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15 de janeiro de 2019 

Rio On Watch + Fórum Grita Baixada 

A BAIXADA FLUMINENSE E A NECROPOLÍTICA DE WILSON WITZEL - PARTE 1 

Esta é a primeira matéria, de uma série de duas partes, que traz análises de representantes e moradores da Baixada Fluminense sobre as políticas do governador eleito Wilson Witzel.

 

A vitória do governador eleito Wilson Witzel, um ex-juiz federal que conquistou exatos 4.675.355 votos, resultou em uma trama de preocupações, especialmente quando se interpreta de forma crítica o planejamento de determinadas políticas públicas em sua gestão. Observou-se um candidato—desconhecido do grande público, que nunca ultrapassava a marca do 1% das intenções de voto—afirmar, sem sutilezas, que pretende empregar com pragmatismo a política de segurança pública do Rio de Janeiro, de forma que, dentre tantas aberrações, agentes do Estado teriam permissão tácita para matar inimigos, caso se sentissem ameaçados. O impacto de suas declarações, especialmente entre moradores de favelas e outras periferias — históricas vítimas dos abusos de poder que quase sempre ocorrem em operações militares em seus territórios — é mais preocupante quando se descobre que Witzel afinou seu discurso com o do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), claramente com um posicionamento político de extrema-direita.

 

O Que Witzel Já Vem Sinalizando

Dentre os vários entendimentos sobre o que seria uma política de extrema-direita na área de segurança pública, está o aprimoramento do caráter conservador ou tradicional no modo de se criar, mudar ou simplesmente interpretar dispositivos jurídicos na legislação, de forma que se autorize, perante uma série de resultados possíveis, um embrutecimento de estratégias e táticas de enfrentamento pela corporação policial. Como exemplo, há um entusiasmo em relação ao artigo 23 do Código Penal Brasileiro, aquele que trata dos chamados excludentes de ilicitude.

 

Dos quatro parágrafos apresentados no artigo 23, dois se enquadram como potenciais justificativas para o aumento do uso da força dos agentes de segurança ao enfrentar a criminalidade: “o estado de necessidade”, quando o autor “pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio”, e “a legítima defesa”, que consiste em “quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Na opinião de vários estudiosos, colocar os excludentes de licitude como diretrizes de permissão ajudaria a flexibilizar ainda mais, perante a lei, a justificativa de assassinatos de moradores de áreas pobres na ocorrência de algum confronto. Witzel declarou recentemente, em uma entrevista, que a PM vai poder mirar na “cabecinha” de traficantes e atirar caso algum deles simplesmente esteja armado, mesmo sem a possibilidade de oferecer risco, apesar de que, como já muito bem difundido, muitos moradores de favelas já foram assassinados ao portar objetos que foram confundidos com armas.

 

Essa evidência se transformou em forte possibilidade quando o governador eleito embarcou recentemente em viagem para Israel para conhecer modelos de drones munidos de fuzis que atiram em alvos baseados em reconhecimento facial eletrônico. Esse tipo de equipamento, até então só foi utilizado em momentos de guerra. Isso sem falar do pouco caso que costuma fazer quando o assunto é superpopulação carcerária. Com a terceira maior população carcerária do mundo, 726.000 presos, ou quase o dobro do número de vagas disponíveis, segundo o Atlas da Violência 2016, o Brasil corre o sério risco de uma piora do já colapsado sistema. Mas o diagnóstico de Witzel para um problema extremamente complexo é simples: “Cova a gente cava e presídio, se precisar, a gente bota navio em alto-mar”, como discursou em encontro na sede da Associação de Oficiais Militares do Rio, sob efusivos aplausos da plateia.

 

Introdução à Necropolítica

Todas as circunstâncias acima, e levando em consideração o racismo institucional por trás de algumas proposições, levam a crer que o estado do Rio de Janeiro está prestes a sofrer uma atualização daquilo que se chama necropolítica, uma linha de pensamento desenvolvida pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, em ensaio homônimo, que ganhou repercussão internacional. A necropolítica, segundo Mbembe, seria uma variante do conceito de biopolítica, desenvolvido pelo colega francês Michel Foucault.

 

A biopolítica é uma forma de governar marcada pelo biopoder, que é um poder produtivo que o Estado ou o governante detém, voltado para prolongar a vida, multiplicá-la, e geri-la. Assim, protege-se a vida porque ela é útil, produz valor. E para ser útil, a vida precisa ser disciplinada. Mbembe, por sua vez, enxerga que a biopolítica torna-se cada vez mais uma necropolítica, marcada pelo poder de tirar a vida, na medida em que os indivíduos tornam-se supérfluos, e que sua força de trabalho seja não mais rentável e, portanto, dispensável para a reprodução do capital.

 

O poder e o direito de causar a morte passa a ser cada vez mais difícil de conciliar com o poder de causar a vida. Para decidir quem deve viver e quem deve morrer, o Estado define inimigos internos, aqueles que, quando eliminados, tornam a vida dos outros mais saudável. Assim escreve Mbembe quando revela o caráter racista dos critérios de definição desse inimigo que autoriza a matança tutelada pelo Estado: “[E]m termos foucaultianos, racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder. Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição de morte e tornar possível as funções assassinas do Estado. Segundo Foucault, essa é ‘a condição para a aceitabilidade do fazer morrer'”.

 

Reflexões Advindas da Baixada Fluminense Sobre Necropolítica Programada no Governo Witzel

Com base em todas essas informações, pedimos para que estudiosos, movimentos, ativistas e moradores da Baixada Fluminense e do Rio analisassem o contexto político do futuro governo Witzel para a segurança pública.

 

O coordenador executivo do Fórum Grita Baixada, o sociólogo Adriano de Araújo, afirma que o discurso político do novo governador aponta para mais do mesmo: segurança como caso de polícia, ostensividade e repressão, contrariando todo um conjunto de experiências e estudos que evidenciam a baixa capacidade dessas estratégias de reduzirem a violência.

 

“Causa-nos grande preocupação este tom militarizado e policialesco da segurança pública a ser reforçado pelo novo governo estadual. Lembramos que, segundo o plano de governo, a responsabilidade pela redução da violência cairá nos ombros dos próprios comandantes locais dos batalhões, como afirma o documento: “responsabilizando localmente os agentes de comando pelos resultados obtidos no combate e investigação criminal, bem como sobre os índices de segurança pública”, diz Adriano. E prossegue: “A pergunta que se impõe então é: a política pública desse novo governo no campo da segurança será aumentar ainda mais a morte de corpos pobres, negros e periféricos? As respostas a essa pergunta irão determinar o nível dos embates e dos desafios que teremos que enfrentar cada vez mais a partir de janeiro”, afirma o sociólogo.

 

Para o historiador e coordenador do projeto do Fórum Grita Baixada “Direito à Memória e Justiça Racial“, Fransérgio Goulart, a política de Witzel e Bolsonaro para a segurança pública é norma vigente no mundo atual, sempre considerando que a conjuntura do sistema capitalista é a “da morte dos indesejáveis”.

 

“Na perspectiva do capitalismo, como aponta o autor David Harvey, que vê a ascensão de práticas econômicas por espoliação caracterizadas pela privatização de empresas estatais, da moradia popular, dos recursos naturais, além do aprofundamento da mercantilização do trabalho por meio de ataques à legislação trabalhista e aos direitos previdenciários em escala global, a necropolítica seguirá seu rumo, pois a tal reserva de mão de obra não se faz mais necessária para o capitalismo. É um poder de determinação sobre a vida e a morte ao desprover o status político dos sujeitos. Utilizam-se técnicas e desenvolvem-se aparatos meticulosamente planejados para a execução dessa política de desaparecimento e de morte. Ou seja, não há, nessa lógica sistêmica, a intencionalidade de controle de determinados corpos de determinados grupos sociais. O processo de exploração e do ciclo em que se estabelecem as relações neoliberais opera pelo extermínio dos grupos que não têm lugar algum no sistema”, explica Fransérgio.

 

O também sociólogo José Claudio Sousa Alves, da UFRRJ, autor de Dos Barões ao Extermínio, uma história de violência na Baixada, fornece uma análise bem mais crítica sobre essa política de morte. “Parece ser uma tentativa de proteção e preservação da própria segurança pública, diante de propostas absolutamente estapafúrdias como a liberação de armas para a população, o uso de eliminação de pessoas com armamentos sofisticados e o excludente de ilicitude que será utilizado pela polícia para dar mais letalidade nas suas operações, especialmente em áreas favelizadas, vitimando moradores e principalmente os mais jovens”, diz José Claudio. Ele conclui afirmando que haverá “manifestações reativas” a essas propostas de governo, em termos do aumento da violência, no descontrole desses armamentos, principalmente num cenário de tráfico de armas. 

 

 

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O filósofo Aquile Mbembe, autor do inovador ensaio Necropolítica