18 de dezembro de 2017

 

Artigo 

Cartografando vivências na Baixada cruel

por Marcelle Decothé,  junior campaigner da Anistia Internacional Brasil

 

 

Como é ser mulher na Baixada Fluminense? Como se dá o impacto da violência de estado em nossas vidas diariamente? Essa e outras perguntas foram a base das atividades do projeto de “Cartografia Social: O impacto da militarização na vida de mulheres da Baixada”, realizado pelo Centro de Direitos Humanos de Nova Iguaçu com o apoio da Fundação Heinrich Bõll. Mulheres de sete municípios da BF se reuniram durante um pouco mais de dois meses para cartografar e debater sobre a configuração da violência em suas realidades locais e, mais do que isso, como essa violência se apresenta pela ausência (ou não) do estado nestes municípios.

 

Mas o que é a cartografia social? Desde o início, aprendemos juntas como o conceito de “cartografia social” é fluído, um processo por si só de auto-afirmação, envolvendo práticas de mapeamento geográfico, percepções, registros, coleta de informações, trocas, vivências compartilhadas a partir de subjetividades; A cartografia social, insurgente, decolonial, a cartografia da necropolítica, ou seja lá a nomenclatura que você utilizar, se permite ser uma metodologia de pesquisa, mas também uma ferramenta de incidência política, capaz de unir mulheres de contextos sociais distintos construindo juntas um ‘saber’ não-acadêmico refletido em dados auto-gerados, mapas de vivências, trocas, pertencimento e afetos.

 

A partir das oficinas de cartografia, nós mulheres da Baixada, conseguimos mapear em nossos municípios a atuação de diferentes atores estatais e não-estatais, a violência que é tão estigmatizante em nossa região foi um filtro em que olhamos cuidadosamente para entender o “porquê” os nossos e nossas são os mais afetados, por que continuamos a morrer? Por que nos privam de estudar? De ter acesso a saúde? Por que em nossos bairros, historicamente, a violência é perpetuada seja pela polícia, por grupos de extermínio, por milícias e até mesmo por nossos maridos e companheiros. São muitas Baixadas, realidades diferentes, mas, no fundo, similares em sua reprodução cotidiana de dor. Ser mulher aqui é um ato de resistência, e através da cartografia de nossas vivências conseguimos visualizar minimamente o impacto desses processos em nossas vidas.

 

Em meio a dor, ousamos nos reinventar e ter esperança.  Sim, a reinvenção cotidiana da mulher baixadense está no ato de continuar respirando, mesmo com todo o machismo, racismo e perpetuações de outras violências, esta mulher levanta todo dia, enfrenta o assédio no transporte público, o racismo de seu patrão, enfrenta o olhar estigmatizado por afirmar ser “baixadense”, cuida de seus filhos, se torna o pilar de sua família, reza/ora, pede aos orixás força para aguentar o dia de amanhã, enfrenta o estado, pede justiça. Ela, definitivamente, não é apenas uma estatística negativa, mas sim a ressignificação da guerreira. Que produz e conduz o seu próprio destino se apropriando de ferramentas como a cartografia na sua busca por transformação social.