Artigo 

Feminismo Negro: Dos desafios de combater a violência de gênero na Baixada Fluminense

Por Lilian Luiz Barbosa, pesquisadora do Laboratório de Estudos de Relações Étnicos Raciais- NEPP-UFRJ.

Bolsista do Núcleo de Solidariedade Técnica da UFRJ / SOLTEC

 

 

    Falar de feminismo negro é salientar que estamos tratando de mulheres negras na luta contra o machismo. E o machismo, assim como qualquer outra forma de opressão, pode incidir em seus corpos. Quando menciona-se Feminismo Negro, deve-se destacar que maioria das mulheres destes país são negras. E a concepção universalista de que todas são mulheres não se materializa para mulheres negras.

 

       As mulheres afro-brasileiras, na década de 1980, já pensavam sobre seu papel na sociedade, pois também sofriam com o patriarcado, com o racismo e o próprio preconceito das mulheres feministas brancas. Os rebatimentos do machismo se materializam em ambas, mas as mulheres negras ainda sofrem com tantos outros tipos de opressão. Neste período, existia pouco material no Brasil abordando o feminismo negro. Entre fins da década de 1970 e 1980, podemos dizer que existiram mulheres questionando o seu papel dentro dos movimentos negros. Os homens, por sua vez, afirmavam que isto não era tão importante quanto a questão social. Todavia, falava-se de violência, aborto, preconceitos. O papel da mulher no mercado de trabalho era essencial. Entretanto, pensava-se a formação racial e social brasileira, mas sem pensar no papel das mulheres, principalmente das mulheres negras no sustento desta sociedade que estava entrando em mais uma crise sistêmica do capital. Isto em uma conjuntura que ainda negava a existência do racismo e acreditava no mito da democracia racial.

 

     Logo, diante deste fato, pode-se salientar que mulheres negras sempre estiveram no mercado de trabalho. Que antes mesmo do sufrágio universal, eram as escravizadas que sustentavam a Casa Grande. Desde os caprichos do Senhor de escravo, com violências sexuais constantes, assim como das sinhazinhas. Para falarmos de uma emancipação humana, deve-se considerar que é preciso superar o capitalismo, o racismo e machismo. Na Casa Grande, as mulheres encarnavam o "sexo frágil" e, no modo de produção escravista, não havia divisão sexual do trabalho, porque as mulheres negras tinham que produzir o mesmo que os homens negros. Enquanto na Casa Grande as sinhazinhas tinham "leites frágeis", eram delicadas e fracas, as mulheres negras é que tinham que amamentar seus futuros algozes, cujo leite era forte.

 

     O mito do sexo frágil não perpassa a mulher negra. Embora sofra, chore e se emocione, precise ser sensível, não tem o direito de ser frágil. Existe ainda hoje o estereótipo de sermos raivosas, rancorosas e vitimistas. O fato é que são forçadas a serem guerreiras. Entendendo-se que estas categorias se materializam de formas diferenciadas de acordo com os grupos específicos.

 

    Todas as mulheres sofrem com o machismo? Sim. Mas como ele se manifesta em corpos negros? Quem são as que sofrem mais violência? Seja ela física, patrimonial, sexual, moral e psicológica? De acordo com os dados do Dossiê da Mulher de 2017, cuja fonte foram os dados de registro de ocorrência do Instituto de Segurança Pública foram registrados cerca de 70.063 casos de lesão corporal, o que significou um aumento de 63,8% de vítimas mulheres.  

 

     A Baixada Fluminense possui uma história de violência que permeia a vida dos seus moradores por anos. Não bastasse a existência de esquadrões da morte e grupos de extermínio que aterrorizam a população negra, pobre e favelada da região desde o final da década de 1960, percebemos que o contexto histórico da BF também atinge a mulher negra, em sua maioria trabalhadoras, domésticas que saem de suas cidades para enfrentar os trens precários e superlotados, pagando passagens caras, sofrendo diversos tipos de assédio no percurso.

 

    São mulheres que deixam seus filhos nos territórios, onde a questão social está latente. São elas que atravessam a cidade para ganhar seu pão. São elas que entram no mercado de trabalho mais cedo e são as últimas a sair. A contrarreforma de Previdência do governo golpista prejudica mais as mulheres negras e pobres. Embora a Baixada tenha cidades mais industrializadas, onde predomina-se o setor têxtil, o arcaico e o moderno se equilibram na mesma realidade. Embora o Estado esconda, existem muitas áreas rurais na Baixada com mulheres conduzindo atividades correlacionadas.  

 

    São as mulheres periféricas da Baixada que lideram as estatísticas  negativas dos indicadores sociais. Cabe salientar que este fenômeno não deve ser analisado, sem considerar o contexto macro. Alguns municípios da Baixada conseguem sustentar economicamente a região metropolitana do Rio de Janeiro, mas ignoram a questão de gênero e racial. Com isso, fazem uma leitura errônea, assim como vários pensadores, sobre a formação social Brasileira, sem entender que a fundação da sociedade se baseou na exploração de corpos pretos em detrimento do lucro. Isto inclui as mulheres, que tiveram papel importante nas lutas e foram abafadas pela História e pelo sistema patriarcal, que surgiu no modo de produção feudalista e permanece até hoje para segregar e criar papeis sociais de acordo com as ideias da classe dominante.

 

Comparando a capital do Rio de Janeiro com a Baixada Fluminense

 

   Ao analisar os dados do Dossiê da Mulher 2017, podemos perceber que dos 103 homicídios de mulheres registrados na delegacia, 15 casos ou 5% da estatística, foram caraterizados por feminicídios.

 

    O ano de 2016 registrou 44.693 mulheres vítimas de lesão corporal dolosa. Em relação a 2015, houve redução de 9,3% no total de mulheres vítimas. Ainda assim, o estado registrou, em média, cinco mulheres agredidas por hora em 2016. E aqui não mostra qual a cor destas mulheres. De acordo com Lei nº.11.340/2006, Lei Maria da Penha, 28.105 mulheres foram vítimas de violência, uma redução de 9,8% em comparação a 2015. O que significa que, em média, a cada hora, pelo menos três mulheres são agredidas fisicamente em contexto de violência doméstica.

 

   Ao demostrar estes dados, faço questão de ressaltar que a realidade das moradoras da Baixada Fluminense é bem precária, se considerarmos os territórios e os serviços ofertados a esta população. São as mesmas que  quando não têm medo de denunciar pelo Disque 180, chegam a Delegacia de Atendimento à Mulher e não recebem os devidos cuidados e atendimento sem sofrer outras violências simbólicas. Em muitos dos casos, elas são orientadas a não denunciar. Como existe o medo, a dependência emocional, a ameaça é constante e muitas destas vítimas morrem.

 

     Mas existe resistência na Baixada. O feminismo negro com mulheres diversas, assim como organizações, movimentos de bairros, pastorais, e as mães vítimas de violência da baixada. Cabe salientar que o Estado genocida, aborta cada mulher que perde seu filho para violência do Estado, seja ela com as forças coercitivas ou aquelas que o Estado permite criar, como as facções criminosas, para que se justifique as guerras às drogas, para que o mecanismo de extermínio seja a barbárie.

 

     Existem na Baixada Fluminense, assim como em outros territórios, várias mulheres resistindo, não se curvando ao Estado. Forjadas na dor, são mulheres que chefiam suas famílias, mulheres que estão à frente de seu tempo, que não precisam ser categorizadas como feministas negras, mas estão na luta pela sobrevivência do seu corpo. Para saber mais sobre feminismo negro, recomendo a leitura de intelectuais negras como Bell Hooks, Angela Davis, Sueli Carneiro, Lélia Gonzales, Jurema Werneck, Giovana Xavier, Janaina de Oliveira etc.

 

    Em suma, para resistir e combater este Estado capitalista, racista, classista e machista, é preciso entender que a luta é coletiva. Que para falarmos de feminismos, é preciso entender as demandas, as especificidades dos grupos. É preciso não ignorar a sexualidade, a questão de gênero. O feminismo que não considera estes fatores não pode ser emancipador. É preciso considerar que, em determinados corpos e territórios, a violência ceifa mais. É preciso entender que a objetificação ainda é um fato na vida de muitas mulheres negras, que ainda sofrem com a exploração, a dor, a violência obstétrica, a erotização do corpo. É preciso entender e combater o extermínio de um povo, seja pela sua cor ou gênero.