26 de novembro de 2020 

 

ARTIGO 

Precisamos dos outros 335 dias no ano

Por Lu Ain-Zaila, escritora

 

Sim. Nos deixem respirar, pensar, comentar filmes, falar de culinária, rir, comentar games. Enfim... do que nos dá prazer, mas não sei se o termo “deixem” é o correto. Talvez o mais assertivo seja dizer “reconheçam que temos mais a dizer...”, pois a questão não é simplesmente falar em novembro, mês da consciência negra, mas não falarmos nos outros meses do ano. E acredito, não tenho dúvidas que essa questão não é um problema de pessoas negras, tem a ver com ocupação dos espaços, visibilidades, ter essa outra voz, vinda de um corpo negro se expressando.

 

Não tenho qualquer dúvida de que novembro é importantíssimo e necessário, mas sempre me pergunto por que aparece muito mais atividades nesse mês que nos outros. Nessas horas eu me pergunto por que é tão difícil nos ver nos outros onze meses do ano? Já se perguntaram por que acreditam que não falamos sobre outros assuntos? Definitivamente essa retórica não é voltada a uma pessoa negra. Não criamos o racismo, mas nossos corpos convivem com ele por nós e por vocês não negros. Isso te parece justo? A mim não...

 

Existem alguns ou muitos estudos sobre a brancura super expositiva, aquela onde pessoas brancas racistas ou não conscientes do seu racismo acham natural 50 séries de streaming no ano com protagonismo branco e apenas, talvez duas negras e aquela ideia polêmica de que o canal poderia ter se poupado de críticas se contratasse um profissional de consultoria que dissesse a verdade à diretoria. Umas multinacionais de cosméticos, de roupas, de tênis deveriam rever sua brancura como marketing e não estou falando de um comercial ou campanha. Estou falando de uma ocupação de cargos afirmativa. Vocês definitivamente precisam se analisar.

 

A questão, vamos aprofundar, é que criaram um imaginário para nos aprisionar, de que só falamos de racismo, mas vamos lembrar aqui, também, que chato mesmo, cruel, é morrer assassinado com dez pessoas olhando e não ver nenhuma lata de ervilha surgir no horizonte. Temos medo disso os 365 dias do ano porque contar com a empatia de quem não te reconhece onze meses do ano é complicado, melhor não contar com isso.

 

Por isso costumamos falar nós, porque poderia acontecer com qualquer um de nós quando a referência é “era um negro de blusa laranja” ou “ela era uma preta de cabelo cheio”, mas ao se referir a um não negro, haja dúvidas entre o castanho médio mel de um e o castanho louro acinzentado do outro, da outra. Aí todos são muitos diferentes. Já pensou nisso? Seria bom.

 

E é sério. Eu quero muito falar de um desenho chamado Psicho Pass e um outro chamado Japão Submerso, mas isso não vai tomar o lugar de um relato sobre quando a minha bolsa de livros travou a porta do Banco do Brasil e o segurança ficou com cara de tacho. Não há como não ver um padrão de ser. Essa é a questão, nós queremos conversar sobre amenidades tanto quanto qualquer outra pessoa não negra, mas não podemos nos calar sobre estas coisas. Elas nos afetam, causam desgaste, raiva e temos direito a isso sem ser sinônimo de sim a um estrangulamento. Nós queremos ver pessoas não negras lendo os nossos livros e conseguindo pronunciar palavras como estética, sutileza, frescor sem morrerem engasgadas, como se o subconsciente a impedisse de dizer palavras de maior valor e positivas sobre pessoas negras.

 

Aliás, isso me lembra um teste de diversidade criado por Shukla, indiano que ficou muito danado quando lhe perguntaram se seus personagens não poderiam se chamar Bob ou John? Mas olha que interessante... um nome inventado branco, filho de esse, da casa de aquele, um dialeto de mundo espacial branco, um feitiço élfico, um mito grego, nórdico... nenhuma pessoa não negra reclama. Fica até encolhida ao ser a unidade fora da última moda, pesquisa no google rapidinho. E os nomes dos k-pop, k-drama j-dramas, doramas, nenhum John, no máximo Park- ... e está tudo bem. A cura da língua presa na linguística (que só acontece com conteúdos não brancos) não é maravilhosa?! É... como que não é. É.

 

E sim. Eu sou aquela pessoa que fica pensando, imaginando como situações absurdas se naturalizam. Certo, eu sei como, estudo isso e exatamente por isso, pensei em propor um censo pessoal: anotem seus programas em geral e vejam com quantas pessoas negras você topou? Se elas têm algum parente? Se morrem logo? Se são protagonistas? Acho que deu pra entender a ideia...

 

E antes que falem algo sobre, já vi série coreana, chinesa, tailandesa, algumas muito boas no quesito fantástico, policial, mas eu também vi que eu, pessoa negra posso e devo consumir esses produtos, do segundo grupo de brancos com dezenas de séries enquanto roteiros de pessoas negras “só podem ser interessantes a pessoas negras...”, a mesma coisa dizem de livros, filmes, arte, etc. É sério isso? Sim! A brancura sabe o que faz quando cria essa barreira para as histórias e culturas e míticas negras. A grande questão agora é quando você, indignado vai protestar e não achar que até isso é moda? Ausência é algo terrível.

 

Essas questões acabam me respondendo, em parte porque não temos espaço para falarmos nos outros dias do ano sobre qualquer coisa. E não é uma acusação, mas um alerta sobre como é preciso reavaliar as estruturas, pois o racismo estrutural não se chama estrutural por acaso.

 

Pois é. Essa é a grande questão, não brotamos do chão em novembro. Estamos correndo atrás das possibilidades de uma vida e sonhos a realizar tanto quanto pessoas não negras.

 

Tudo o que queremos é que entendam que não pararemos de falar do que nos fere psicologicamente e mata, mas que podemos também falar de como fazer um mingau de aveia bem macio, deixa de molho uns 20 minutos que fica ótimo. E vai bem numa vitamina de mamão sem leite também.

Reconheçam que temos o direito de viver.

 

É isso.