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29 de julho de 2021 

ARTIGO 

POLÍTICA E VIOLÊNCIA NA BAIXADA FLUMINENSE/RJ

Por Lorene Monteiro Maia, mestre em Políticas Públicas pela UFRRJ e articuladora de territórios do Fórum Grita Baixada. 

 

 

INTRODUÇÃO

 

O presente trabalho é fruto de levantamentos e estudos sobre política e segurança pública na Baixada Fluminense[1] realizados em 2020 pelo Fórum Grita Baixada[2] (FGB), ano em se sucederam as eleições locais. Surge a partir de observações originadas da prática em campo nas periferias dos municípios da Baixada, bem como de leituras e análises realizadas para desvendar o ambiente e entrepostos desta região tão à margem das discussões e execuções de políticas públicas no estado, em especial as que se referem a segurança pública nesse território.

 

O Brasil vive uma fase do ciclo democrático, curiosamente marcada pela retração da damocracia. Essa fase de encolhimento democrático é caracterizada pela diminuição de direitos sociais, desrespeito aos direitos humanos, por uma crise política acirrada e, sobretudo, pelo aumento da violência, em especial da violência de estado (violência esta que incorpora não apenas a violência policial direta, mas também aquela incentivada e legitimada pelo próprio estado, regulamentada sobretudo pela insegurança jurídica e institucional).

 

Dos Barões ao extermínio, parafraseando o título do livro do professor José Claudio Souza Alves (2003), a Baixada Fluminense está imersa em um ciclo de inúmeras violências. Neste artigo serão abordadas as violências relacionadas a letalidade enquanto efeito direto das eleições regionais neste território, demonstrando que esse histórico de violência perpassa o tempo entre os grupos de extermínio, matadores civis e, mais recentemente do aparecimento das milícias e de uma nova estrutura do tráfico na região (efeitos possivelmente associados às mudanças provocadas pela política de segurança pública adotada pelo governo estadual nas favelas da capital carioca, as UPPs, executada e intensificada entre os anos de 2008 e 2016), bem como nas conexões cada vez mais diretas entre políticos do executivo e do legilativo municipal com grupos de matadores, milicianos e também com o próprio tráfico, união há tempos chamada de paraestatal, mas que agora se apresenta mais claramente como forma de manifestação de poder do próprio estado.

 

1. A BAIXADA FLUMINENSE

 

Localizada na Região Metropolitana do estado do Rio de Janeiro, a Baixada Fluminense é composta por 13 municípios (Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim, Itaguaí, Japeri, Magé, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Paracambi, Queimados, São João de Meriti e Seropédica), conforme observado no Mapa 1:

 

Mapa 1 – Baixada Fluminense (imagem encontra-se ao final do artigo) 

 

Conforme definiu Alves (1994), em relação ao primeiro impacto causado pela Baixada:

 

Descendo a Serra dos órgãos ou a Serra das Araras em direção ao Rio de Janeiro, uma dupla sensação de contraste é experimentada pelo viajante. A primeira é aquela que opõe os contrafortes das Serras às planicies que se estendem suavemente, a segunda, a que confronta a beleza da paisagem vista por entre as encostas das montanhas com a cinzenta e confusa malha periférica com seus aglomerados de casas disformes e inacabadas; com seus ferro-velhos repletos de carcaças de automóveis empilhadas e com suas ruas de barro que se prolongam infinitas e transversalmente à rodovia. Essa sensação torna-se mais singular e legítima quando se sabe que esta região é a Baixada Fluminense. (ALVES, 1994, p. 3)

 

Um impacto que 3.908.510 pessoas de acordo com o IBGE (2020)[3], sentem cotidianamente entre o medo da violência, a infraestrutura precária corroborada pela negligência do poder público e a rica cultura de um povo, sua identidade e suas raízes. Como descreveu o autor, a paisagem horizontal observada na Baixada proporciona fácil deslocamento entre as inúmeras formações espaciais e urbanas. No entanto, quando associa-se a geografia ao social, fortes barreiras são encontradas, barreiras estas que fragmentam o que deveria ser um "continuum" urbano (ALVES, 1994).

 

Portanto, refletir estas questões sobre esse território é buscar o entendimento sobre suas diversas segregações e violações (espaciais, econômicas, politicas, culturais, sociais, de direitos, dentre outras) que, mais que incidir sobre a vida da população, constituem sua formação identitária, ora transformando-a e por vezes construindo-a.

 

Desta forma, compreender o contraste que representa a Baixada, avança sobre a análise de dados em relação a violência, ao crime ou pobreza. É fundamental observar o todo em toda a sua complexidade de interpretações advindas não apenas das narrativas oficiais, mas também dos vários relatos de moradores, das vítimas e das mídias locais que, muitas vezes, produzem contranarrativas capazes de ressignificar este território.

 

Por isso, investigar as noções que um território pode ter no tempo e no espaço, ao longo da história é fundamental para entender os significados que ordenam as formas de espacializar uma região “além de identificar as forças sociais que auxiliaram a construir o sentido da própria palavra que serve para designar a porção de terra” (SILVA, 2013, p. 48). Dessa forma, para definir a Baixada Fluminense em toda sua complexidade é preciso compreender seus muitos aspéctos, missão que vários autores já assumiram, cada qual através da adoção de um parâmetro: Alves em sua tese de 1994 a partir da violência (aspécto que também será adotado aqui); Marques em 2006 por meio do uso político dessas definições; Simões, em sua tese em 2007 e depois em seu livro em 2011, a partir de uma visão histórica, política e ambiental; e Rocha em 2013 ,em suas pesquisas de mestrado e doutorado, problematizando a construção hegemônica de uma literatura sobre a Baixada, analisando-a a partir do viés geopolítico dos seus recortes.

 

1.1. Breve histórico: a violência e a construção do território

Foi em 1833, ano da criação do grande município de Iguassu, que geograficamente começou a tomar forma o território hoje conhecido como Baixada Fluminense. Contar a história do município de Iguassu é, portanto, trazer a tona a própria história da Baixada, uma vez que também a história de sua fragmentação e das muitas emancipações que se sucederam ao longo do tempo, dão conta de sua formação atual (SILVA, 2013).

 

Ainda nesta fase de formação do território a partir do loteamento da Baixada, em que lotes de terras eram vendidos à população trabalhadora que chegava em busca de moradias mais baratas nas proximidades da capital, como indicado por Alves (2003), grupos de matadores já atuavam aqui, em um contexto que deu surgimento à históricas figuras como Tenório Cavalcanti, líder político cuja trajetória está associada à violência na região, iniciando uma trama de patronagem local, em que justiceiros exerciam o poder através da violência e projetavam-se como "líderes" regionais na política.

 

Foi dessa forma que, além de ser reconhecida como o espaço de moradia da classe trabalhadora, a Baixada ganhou também a imagem de região violenta. Marcada  ainda pelas várias chacinas iniciadas com os esquadrões da morte na Ditadura Militar (1964-1985), e que se desdobraram entre os inúmeros assassinatos nos anos 80 e 90, organizados pelos grupos de extermínio, a região permanece dominada por grupos criminosos civis-militares e, mais recentemente, também pela expansão do tráfico de drogas.

 

Essa ideia de região violenta está também associada à noção de subalternidade em relação à capital. Não à toa as periferias limítrofes à cidade carioca possuem índices de violência mais altos. Dados do ISP (2020)[4] demonstram que, na Baixada, a taxa de assassinatos é de cerca de 80 pessoas para cada 100 mil. Esses dados são calculados a partir da taxa de letalidade violenta, medida em relação aos crimes contra a vida. Na cidade do Rio de Janeiro, o número de mortes é de 40 para cada 100 mil habitantes, o que corrobora a visão da Baixada como um dos territórios mais violentos do estado.

 

O Atlas da Violência (2018)[5] trouxe uma realidade ainda mais cruel: dois municípios da Baixada figuraram entre os dez mais violentos do Brasil. Dados de 2016 inseriram Japeri na sexta posição (95,5 mortes para 100 mil habitantes) e Queimados como a campeã brasileira no ranking da violência (taxa de 134,9 mortes). Somam-se a essas mortes casos de desaparecimentos forçados e de assassinatos não comunicados, práticas muito comuns na região.

 

Associada a toda essa violência esteve também, ao longo do tempo, uma simbólica construção do poder. Poderes locais, tais como o tráfico e a milícia, "tidos até então como paralelos ao Estado", não só preservaram em suas composições agentes públicos, como continuam por ocupar os cargos no executivo e no legislativo municipal. Outrora conhecidos como "coronéis", são políticos que mantém seus feudos, seja pela força/influêcia ou associando-se mais diretamente com o tráfico local, como no caso de Japeri em (2018)[6], onde prefeito e o presidente da câmara, acusados de associação com tráfico de drogas, foram presos em uma operação da Polícia Civil com o Ministério Público do Rio de Janeiro.

 

Portanto, se com o fim da ditadura militar, de 1964 a 1985, nacionalmente viveu-se um período de democratização por meio da reconstituição tanto da sociedade civil organizada, quanto dos partidos políticos, com a reforma Constitucional em 1988 que proporcionou a estabilização de uma forma de governo ampla e democraticamente eleito, garantida a alternância de gestões. Nos anos mais recentes, sob o marco da destituição de Dilma Rousseff em 2016 e a eleição do atual presidente Jair Bolsonaro em 2018, candidato representante da extrema direita, acirrou-se nacionalmente esse quadro de encolhimento de direitos sociais, bem como da escalada de violência em diferentes campos, em especial nos que abordaremos aqui, a política e a violência de estado.

 

2. ELEIÇÕES MUNICIPAIS NA BAIXADA FLUMINENSE: CRIMES POLÍTICOS E DISPUTA ENTRE GRUPOS CRIMINOSOS

 

Embora possa se observar crimes políticos em boa parte do território nacional, a Baixada Fluminense possui em seu histórico, diversos casos que comumente são associados a uma espécie de cultura política local. A região concentra a maior parte dos assassinatos ligados a pauta política no estado do Rio de Janeiro.

O ano eleitoral, principalmente em eleições como a de 2020, em que se disputaram cargos locais, tais como os de vereadores e prefeitos, é comumente um período permeado por ameaças, atentados e extermínio de candidatos rivais, em uma tentativa histórica de manutenção ou de avanço do poder.

 

Uma matança relacionada a historia da política local. Conforme já salientado, a política da bala, não é algo recente na região que está submetida também a diversas outras violações. Assistimos na Baixada, no Estado e no Brasil, a ramificação de um projeto de hegemonia política reconhecidamente criminoso. Em fevereiro de 2020,  início do ano das eleições locais, por exemplo, o Intercept Brasil[7] já apontava em reportagem o que comumente aconte na região: “Começou a Temporada de Matar Políticos na Baixada Fluminense” destacando que a região é recordista nesse tipo de crime no estado do Rio de Janeiro e que havia a expectativa de intensificação de assassinatos neste período eleitoral.

 

Os dados levantados pelo Fórum Grita Baixada, nesse mesmo ano, reforçaram aquilo que outros pesquisadores e ativista sociais já apontavam: os crimes eleitorais e a violência política na Baixada Fluminense são, na maior parte dos casos, exercidas entre grupos associados a políticos com práticas criminosas[8].

 

2.1. Metodologia

 

Por meio de análises de reportagens de jornais e sites de notícias, o Fórum Grita Baixada elaborou um levantamento identificando os registros de assassinatos de pessoas vinculadas a política na região entre os anos de 2016 e novembro de 2020 período compreendido entre os anos das duas últimas eleições municipais.

 

Foram consultadas reportagens da mídia nacional e estadual sobre o tema da violência política na Baixada Fluminense. Na ausência de algumas informações, como o partido ou o nome completo do político, foram consultadas outras fontes como blogs de jornalistas e analistas políticos e fontes locais. Para este levantamento foram considerados apenas os casos de assassinatos e descartados os casos de atentados sem mortes.

 

Uma particular atenção deve ser dada a dois aspectos: em primeiro lugar, foram considerados neste levantamento, casos de crimes letais envolvendo quatro categorias de status político: (1) pré-candidatos e candidatos; (2) políticos empossados, suplentes de vereadores, ex-prefeitos, ex-vereadores); (3) gestores públicos como secretarias municipais ou empresas / fundações públicas; e (4) assessores políticos e cabos eleitorais publicamente reconhecidos.

 

A segunda atenção deve ser dada ao formato utilizado para determinar a motivação do crime. A maioria das reportagens foi produzida logo após o delito, não sendo possível, evidentemente, ter definida nenhuma conclusão sobre a sua motivação. Entretanto, adotamos aqui as suspeitas apontadas pelos trabalhos de reportagens, priorizando sempre que possível, o argumento do delegado responsável pela investigação. Ou seja, não consultamos nesta fase do estudo as informações e o resultado de possíveis investigações policiais concluídas, embora saiba-se de antemão que são poucos os casos em que houve a determinação do motivo e da autoria dos crimes.

 

2.2. Apresentação dos resultados

Entre o início do ano 2016 e 10 de novembro de 2020, foram 25 o número de pré-candidatos, candidatos, gestores públicos e cabos eleitorais assassinados na região. O ano de 2016 continua sendo o período com o maior número de mortes, 12 no total (48% do total analisado no período). Em 2018, foram 3 mortos, em 2019 foram 5 vítimas fatais e em 2020 até 10 de novembro, outros 5 assassinatos ligados a política regional. Analisando por um viés de gênero, dos 25 assassinatos, 22 vítimas foram homens, sendo 3 mulheres assassinadas e pertencentes a política local de Magé.

 

Quanto a vinculação partidária, a maioria dos assassinatos refere-se a personagens filiadas a partidos de centro e à direita do espectro político brasileiro, abrangendo um leque bem amplo de treze partidos, muito embora não se aponte para uma concentração em algum deles[9]. Já entre os partidos considerados genericamente à esquerda, seis casos referem-se a três partidos, PC do B, PDT e PPS.

 

Dos 25 casos de mortes, 12 foram ainda na fase de pré-candidatos a vereador (48%), 3 de candidatos a vereador (12%);  3 de  vereadores já em exercício (12%) e 3 de suplentes de vereadores (12%), totalizando 21 dos 25 casos. Os demais casos de assassinatos referem-se a cabos eleitorais (1), ex-candidato a prefeitura (1); ex-vereador (1); e a Gerente de Empresa Pública (1). Assim, se considerarmos aqueles que não eram empossados em cargos eletivos, mas disputavam uma das vagas, teremos 72% dos assassinatos, entre pré-candidatos, candidatos e suplentes de vereadores.  O número de assassinatos de políticos empossados ou gestores públicos (4 no total) corresponde a 16% dos casos. Os 12% restantes correspondem a pessoas de apoio (assessores, cabos eleitorais) ou que já assumiram cargos públicos (ex-vereadores, ex-candidato a prefeito), mas que não estavam oficialmente diretamente envolvidos na disputa eleitoral.

 

Das treze cidades que integram a Baixada Fluminense, oito delas respondem pelos 25 crimes políticos analisados. Nova Iguaçu (586,9 mil eleitores[10]) com sete casos, Magé (193,5 mil eleitores) registrou 6 casos, Seropédica (56,5 mil eleitores) 4 e em Duque de Caxias (658 mil eleitores) ocorreram 3 mortes. Completam essa lista Japeri, Nilópolis, Paracambi e São João de Meriti, todas com 1 caso cada uma.

 

Em relação a motivação dos crimes, de acordo com declarações dos delegados responsáveis pelos casos, 36% correspondem a crimes políticos cometidos por disputa de grupos milicianos. Em outros 20% dos crimes de natureza política não foram identificados milicianos como participantes. Crimes associados ao comércio de drogas referem-se a 12% dos registros. Em 24% dos casos nenhuma linha inicial de investigação foi apontada ou descartada e os 8% restantes referem-se a casos únicos como crime passional, assalto seguido de morte e briga de trânsito.

 

A perspectiva da disputa criminosa e letal pelo território com a expansão das milícias, do tráfico e de grupos tradicionais ligados a ações criminosas na política municipal, portanto, fica latente como uma prática amplamente utilizada, reafirmando o que demonstram diversos estudos dedicados a violência de Estado na Baixada Fluminense, como as produções do sociólogo José Claudio de Souza Alves[11].

 

Outras conclusões também podem ser tiradas, dados a partir de 2018, sobre mortes ligadas a política, sugerem uma tendência de alta desse tipo de crime até novembro de 2020, sendo homens as maiores vítimas desse tipo de crime, o que corrobora uma tendência de maior participação do gênero masculino na política da região, principalmente no que se refere aos cargos de maior prestígio político.

 

O levantamento corrobora ainda, a narrativa a respeito da disputa política e ultraconservadora históricamente presente na Baixada. Não a toa, os assassinatos se concentram no espectro centro direita da política, o mesmo espectro que detem o poder político e economico da região. Os poucos asassinatos no espectro político centro esquerda podem sinalizar tanto esse domínio conservador, como a tendência de eliminação de poderes rivais, sejam eles à esquerda ou à direita da política regional.

 

Sob uma análise concentrada no status político do candidato, pode-se perceber uma forte tendência de assassinatos ainda no status das pré-candidaturas, interrompendo, assim a possibilidade de concorrência pelo poder político do terrritório e, amedrontando outros pré-candidatos, indicando que personagens políticos concorrentes não serão tolerados.

 

Chama atenção o fato de que cidades que possuem altas taxas proporcionais de letalidade violenta como Queimados, Belford Roxo e Japeri não apresentem, há quatro anos, registros jornalísticos de crimes políticos ou sejam inexpressivas numericamente nesse levantamento. Entre as treze cidades da Baixada Fluminense, dados demonstram uma maior disputa violenta pelo domínio político concentrada em quatro dos municípios da região (Nova Iguaçu, Seropédica, Magé e Duque de Caxias) com 80% das mortes. Uma das hipóteses para tal, é que já esteja consolidada uma hegemonia de poder nesses territórios em que essas mortes apresentam inexpressivos ou nenhum regristro limitando, portanto, a possibilidade de concorrência; outra possibilidade é que a disputa dos grupos criminosos ainda não tenha se voltado de modo objetivo e vigoroso para os cargos políticos de maior visibilidade nesses municípios.

 

Os dados analisados pelo Fórum Grita Baixada apontam para uma persistente trajetória de violência política na região. Entretanto, tal modalidade de crime não pode ser dissociada da violência letal mais ampla que, por si só, deveria fazer desse território, a prioridade para ações e políticas públicas de prevenção da violência no estado, o que não se verifica tanto no que tange ao governo do estado, quanto no que tange aos governos municipais.

 

Mas quais os instrumentos que os municípios possuem para tratar da segurança pú-blica?  Como indicam Ricardo e Caruso (2007), para pensar segurança pública na esfera municipal é preciso pensar “fora da caixa”, pensando a política de segurança como uma política integrada e transversal com  as  demais  políticas  municipais.  Isso porquê, quando não entendem segurança pública como uma contrapartida apenas do estado, para a maioria dos prefeitos, bem como os da Baixada Fluminense, o assunto fica limitado a projetos de implementação da guarda municipal armada, instalação de câmeras de monitoramento e programas pontuais de convênio com a polícia militar para o patrulhamento nos centros comerciais da cidade, medidas de enfrentamento já amplamente utilizadas e que comprovadamente não dão resultados menos violentos do do que a já latente violência nas periferias.

 

Ricardo e Caruso (2007) indicam que práticas internacionais e mesmo algumas experiências em cidades brasileiras, bem como estudos diversos no campo da segurança pública apontam para a viabilidade de ações preventivas que podem e devem ser implementadas e/ou replicadas pelos municípios. Calcadas em diagnósticos e mapeamentos objetivos, investigações sobre as manchas criminais, enfraquecimento dos fluxos financeiros dos grupos criminosos, articulação de diferentes setores de inteligência e a adoção de políticas públicas de redução de desigualdades e de enfrentamento ao racismo, valorização do protagonismo juvenil e fortes programas sociais focados nos grupos mais vulneráveis, essas práticas não fogem ao papel dos municípios de desenvolver políticas intersetorais e focalizadas. São práticas certamente dentro da competência deste ente  federativo  e  que,  sem  dúvidas,  podem contribuir para a dimunuição e para a prevenção da violência.

 

CONCLUSÃO

A Participação política e a democracia estão em disputa e debate. A participação direta de agentes públicos nos grupos relacionados as milícias ou outras organizações criminosas, combinada com a letalidade produzida pelos agentes públicos de segurança, responsável, em média, por um terço dos crimes contra a vida na Baixada Fluminense entre os meses de janeiro e fevereiro desse ano (ISP, 2021)[12], nos apresenta desafios: como a violência de Estado poderá ser enfrentada pelo próprio estado? Quais passos precisam ser dados para que a sociedade tenha confiança na capacidade do estado, em suas três esferas de poder (municipal, estadual e federal) fazer frente a algo que parece estar se consolidando cada vez mais, a ponto de alguns já designarem nossa organização política como uma “República das Milícias”?

 

As definições de “pós-democracia” de Rancière (2010) e Crouch (2012), e de “desdemocratização” Tilly (2003) e Brown (2015), já alertavam para o recuo de conquistas ocorridas por meio de lutas populares e anticoloniais que haviam sido fortalecidas no século anterior e já demonstravam que entre as consequências desse recrudescimento estaria a radicalização do autoritarismo e da superexploração do trabalho, utilizados como base de acumulação do capitalismo periférico. Conceitos e definições que possibilitam um maior entendimento da conjuntura brasileira e, em especial, da própria Baixada Fluminense (construída historicamente sobre os pilares da violência e da exploração da mão-de-obra) a partir de um contexto global.

 

Se o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff é a questão que fundamenta todas as análises sobre o recuo democrático no Brasil dos últimos anos, é fundamental analisar como a política local foi sendo construída antes, durante e depois desse marco, sob a base da violência, da superexploração e do autoritarismo.

 

Se sinais do conservadorismo e da repressão do governo foram sentidos, em nível nacional, quando Michel Temer assumiu a presidência, nos executivos e nos legislativos locais esses sinais já eram históricos e foram somente consolidados. Portanto, diante de todo o exposto não dá pra dizer que, de fato, ocorra nos dias atuais um processo democrático na Baixada, bem como nas muitas periferias de nosso país.

 

Os dados e as narrativas apresentadas aqui, demonstram a ocorrência de uma política majoritariamente dirigida e associada ao crime que se consolidou e vem se expandindo no Brasil com a eleição de Bolsonaro e, em relação mais especificamente a Baixada Fluminense, com a eleição do governador impeachmado do estado do Rio de Janeiro Witzel (2018) e com o avanço da extrema direita também nas prefeituras e câmaras municipais (todas estas majoritariamente com o discurso de execução e higienização como solução para a questão da violência, consentindo e/ou atuando na expansão de grupos de extermínio e milícias que resguardam também o poder de ação desses próprios sujeitos políticos que controlam a região).

 

Dados de 2020 da Polícia Civil[13] demonstraram que 80% das localidades no estado do Rio de Janeiro em que existia suspeita de interferência das milícias no pleito eleitoral ficavam na Baixada Fluminense, sendo necessárias operações no dia das eleições para garantir, minimamente, a liberdade de voto. O que nos leva, portanto, a outras questões que em outras produções precisaremos avançar: Seria o próprio estado capaz de resguardar a democracia e garantir o pleito de forma democrática? É possível confiar no sistema e nos mecanismos de combate a crimes políticos e eleitorais, se fazem parte desse sistema e coordenam esses mecanismos agentes que compõe os mesmos grupos que precisam ser combatidos? São algumas das muitas perguntas para as quais ainda não temos resposta.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ALVES, José Cláudio Souza. Baixada Flumlnense: a violência na construção de uma periferia. In: Anpocs, Rio de Janeiro, 1994.

 

________Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense. Associação de Professores e Pesquisadores de História, CAPPH-CLIO, 2003.

 

BROWN, Wendy. Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution. New York: Zone Books, 2015.

CROUCH, Colin. Postdemocrazia. Bari (Itália): Editori Laterza, 2012.

 

MIGUEL, Luís Felipe. Brasil: ¿Post-democracia o neo-dictadura?. Revista de la Red de Intercátedras de Historia de América Latina Contemporánea, año 5, n° 8, Córdoba, 2018.

 

RANCIÈRE, Jacques. .Dissensus: on politics and aesthetics. Londres: Continuum, 2010.

 

RICARDO, Carolina de Mattos. CARUSO, Haydee G. C. Segurança pública: um desafio para os municípios brasileiros. Revista Brasileira de Segurança Pública, v.1, n.1, 2007.

 

SILVA. Lucia Helena Pereira da. De recôncavo da guanabara à Baixada Fluminense: leitura de um território pela história. Recôncavo: v.3, n. 5, 2013.

 

TILLY, C. (2003). Inequality, Democratization, and De-Democratization. Sociological Theory, 21(1), 37–43.

 

NOTAS 

 

[1] Localizada na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, a Baixada Fluminense é composta por 13 municípios.

[2] O Fórum Grita Baixada é um movimento social formado por uma coalização de organizações e pessoas da sociedade civil articuladas em prol de iniciativas voltadas aos direitos humanos e a segurança pública, tendo na Baixada Fluminense seu olhar e seu território de ação. Para saber mais acesse: <www.forumgritabaixada.org.br>.

[3]Ver mais em: IBGE Cidades <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj>.

[4] Consultar ISP em: < http://www.ispdados.rj.gov.br/Arquivos/SeriesHistoricasLetalidadeViolenta.pdf>.

[5] Consultar IPEA sobre Atlas da Violência 2018 em: < https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/180604_atlas_da_violencia_2018.pdf>.

[6] Ver mais em: < https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2018/07/27/prefeito-de-japeri-e-preso-por-suspeita-de-envolvimento-com-o-trafico-de-drogas.ghtml>.

[7] Ver reportagem em: <https://theintercept.com/2020/02/05/temporada-morte-politicos-baixada-fluminense/>.

[8] Seja a milícia, seja o comércio de drogas, domínio de famílias tradicionais que não aceitam perder poderes, privilégios e interesses econômicos.

[9] Avante: 1; Democratas: 2; MDB: 1; PMB: 1; PMN: 1; PRB: 1; PSL: 1; PTB: 2; PTC: 1; PSDB: 1; PC do B: 2; PSB: 2; PDT: 2; Sem identificação: 07.

[10] Os dados referem-se ao número de eleitores aptos a votar. Fonte: TRE RJ (novembro de 2020). Cf em https://www.tre-rj.jus.br/eleicoes/estatisticas-do-eleitorado/estatisticas-do-eleitorado

[11] Autor do livro Dos Barões Ao Extermínio Uma História Da Violência Na Baixada Fluminense.

[12] Ver mais em: < http://www.ispdados.rj.gov.br/Arquivos/SeriesHistoricasLetalidadeViolenta.pdf>.

[13] Portal UOL. Ver mais em https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2020/10/23/candidatos-de-milicias-sao-investigados-por-coagir-rivais-e-eleitores.htm

 

 

 

Mapa da Baixada.png