09 de junho de 2020 

Rio On Watch + Fórum Grita Baixada 

Periferias da Baixada Fluminense têm violência doméstica potencializada pelo coronavírus

Na região não há garantia de direitos, o machismo reina e as milícias também

 

A pandemia do novo coronavírus intensificou cenários de desigualdades e opressão ao redor do país e do mundo. A própria necessidade do isolamento físico, que é uma das determinações mais eficazes da Organização Mundial da Saúde para conter o avanço da pandemia e evitar estatísticas mais catastróficas do que as que já se apresentam, vem apresentando um efeito colateral doloroso: o aumento da vulnerabilidades de mulheres à violência doméstica, devido ao confinamento à vida domiciliar.

 

Na Baixada Fluminense, a violência doméstica dá sinais de ter se agravado em função das medidas de isolamento físico. Para abordar este tema abaixo, foram entrevistados Ana Paula Salles, presidente da Associação de Mulheres de Itaguaí Guerreiras e Articuladoras Sociais (AMIGAS), moradora do bairro do Engenho, em Itaguaí na Baixada Fluminense; Raquel Narciso, coordenadora do Centro de Defesa da Vida (CDVida), obra social vinculada a Diocese de Nova Iguaçu; Fabbi Silva, pedagoga pela UERJ, cria do Parque das Missões, em Duque de Caxias e José Claudio Souza Alves, professor de Sociologia da UFRRJ.

 

Ana Paula, há quatro anos, foi vítima de violência doméstica. Ela levou uma facada, do agressor, na coxa esquerda que, por sorte, não atingiu a artéria femoral, cuja hemorragia poderia matá-la em minutos. Por morar em um bairro periférico, vivenciou não apenas a covardia do ex-companheiro, mas uma estrutura deficitária em termos de atendimento a uma situação de emergência.

 

“O Estado não entra de forma alguma. Eu chamei a polícia e ela não veio. O bombeiro precisou ficar me dando suporte emocional pelo telefone. Eu mesma tive que estancar a ferida. Esperei até às sete da manhã pra pegar uma kombi e me dirigir à UPA mais próxima”, descreveu Ana Paula.

 

Atualmente, Ana Paula é presidente da AMIGAS, uma organização comprometida com as lutas pelos direitos das mulheres e contra a violência doméstica e de gênero. Ela afirma que através das ações da organização, a sensação de abandono e desproteção—vivenciada pelas mulheres vítimas de violência doméstica—é substituída por compras de alimentos, medicamentos necessários para aliviar a dor de feridas e até pela locomoção para abrigos especializados.

Ana Paula disse que “a situação, que já era ruim, neste momento de pandemia ficou pior. A quarentena precarizou as condições para se fazer boletins de ocorrência (B.O.). Muitas delas não sabem nem por onde começar o processo e a falta de informações ajudam a complicar ainda mais o cenário”.

“Os serviços públicos não adentram. Se uma mulher sofre uma agressão grave, como um tiro ou uma facada, a polícia não vai socorrer. Se ela recebe uma medida protetiva e um oficial de justiça precisa intimar o agressor, o oficial não vai entrar nessas áreas. É desesperador!”, ela relata.

 

Ana Paula explica que “as delegacias de polícia na Baixada funcionam como central de flagrantes que funcionam em regime de plantões. Um exemplo: se eu fosse agredida sexta-feira à noite e a central fosse em Itaguaí, eu só poderia fazer o registro no próximo dia útil, que seria uma segunda-feira. E são os dias e horários [dos finais de semana] que o agressor escolhe pra cometer tais atos. Isso sem considerar o fato de que as agredidas não têm sequer dinheiro de passagem para ir à delegacia para fazer o B.O. Como os agressores sabem dessas informações, isso acaba fornecendo um contexto de impunidade”.

 

Enquanto isso, Raquel, coordenadora do Centro de Defesa da Vida (CDVida), em Nova Iguaçu—que, dentre outras atividades, fomenta ações de enfrentamento da violência de gênero e doméstica—explica que: “[Lá] Realizamos apenas 33 atendimentos presenciais e 27 orientações e atendimentos online em março deste ano. O que significa uma redução em relação ao mesmo período do ano passado, pois, devido a quarentena e a recomendação de isolamento social para conter a pandemia do novo coronavírus, suspendemos todas as atividades presenciais na segunda quinzena do mês. Contudo, esse número não é sinônimo de que houve redução da violência doméstica”.

 

De fato, os números não mentem. Mesmo considerando que algumas estatísticas são anteriores à pandemia do coronavírus, eles não deixam de surpreender. Dados do Dossiê Mulher 2019 revelam que a residência é dos lugares mais perigosos para as mulheres. Cerca de 62% dos feminicídios ocorreram dentro da residência da vítima. Uma mulher isolada com um agressor está em grande risco de vida. Dados do plantão judiciário do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro revelam que houve aumento de 50% da demanda durante o mês de março. Houve também um aumento com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que divulgou aumento de 9% de denúncias no serviço “Disque 180” desde o início da quarentena.

 

Machismo e Milícias

Fabbi Silva, cria do Parque das Missões na periferia da Baixada, cuja realidade local também serviu para a sua pesquisa de conclusão do seu curso de Pedagogia na UERJ, fundou, há 12 anos, a ONG Apadrinhe Um Sorriso. Além de atividades de escuta sobre os episódios de violência, Fabbi tem um canal direto com a Defensoria Pública de Duque de Caxias, onde membros do órgão prestam trabalhos de assessoria jurídica. Entretanto, sem os atendimentos terapêuticos da ONG, suspensos por causa da pandemia, o silenciamento retornou com força.

 

Assim como Ana Paula, Fabbi reconheceu que, com o advento do isolamento físico provocado pelo novo coronavírus, as denúncias de maus tratos ficaram obscurecidas por velhas questões, como por exemplo, as dificuldades de acompanhamento das mesmas.

 

“Como a polícia também não entra aqui nesses casos, os maridos se sentem empoderados, e se tornam mais abusivos. Eles estão seguros em serem violentos e cometer as atrocidades”, ela disse. Entretanto, a pedagoga fez uma ressalva. “A violência ocorre dentro da favela, mas não é por acontecer na favela que ela se torna mais violenta. Falta investimentos em educação. A base do problema é a educação. O meu corpo não é para ser massacrado, não é pra ser exterminado. Você não é dono do meu corpo nem das minhas ideias. É preciso combater a manutenção de privilégios que sustentam o patriarcado e o machismo. Precisamos ter uma sociedade voltada para a igualdade de gênero”, ressaltou Fabbi.

 

Ana Paula endossou as palavras de Fabbi: “É o que se apresenta como machismo estrutural, uma cultura milenar, ancestral, arraigada na sociedade. Infelizmente, com essa onda ultraconservadora, só fará piorar. Penso que já na educação fundamental, os conceitos de igualdade de gênero, já deveriam constar na grade curricular dos alunos”.

 

As características do machismo estrutural não se limitam a maridos e namorados violentos, ele está ancorado em estruturas de poder. Em territórios empobrecidos, que convivem cotidianamente com a ausência do Estado, existe um grupo que é preciso particularizar nesse contexto de pandemia de coronavírus: as milícias.

 

Sabe-se que as milícias detêm poderio econômico e capital político para comandarem com mãos de ferro (e manchadas de sangue) os territórios que dominam. Mas a presença delas poderia fomentar o contexto de violência doméstica no âmbito da pandemia de coronavírus? Para responder a essa pergunta, procuramos o sociólogo José Claudio Souza Alves, um estudioso sobre o comportamento das milícias há 25 anos. Ele é autor do clássico Dos Barões ao Extermínio, uma história de violência na Baixada Fluminense. José Cláudio costuma dizer que as milícias se valem de informações privilegiadas para a obtenção de qualquer tipo de ganho. Esse método também se aplica quando precisam evitar ou gerenciar distúrbios internos causados por violência doméstica.

 

Segundo o estudioso, a denúncia de uma mulher pode representar um incômodo. Dependendo do grupo que vai investigá-la, leva a contornos no processo de investigação que estão longe de ser interessantes para os milicianos. Se for para órgãos de proteção, ela ganha dimensões públicas, vinculadas a instâncias específicas do Estado.

 

“Como os milicianos têm controle local de informações, vão fazer ações que impeçam mais investigações. A Delegacia de Repressão ao Crime Organizado (DRACO) pode capturar esses dados, e ela não é sujeita às manipulações da Polícia Militar. Ela opera em cima dessas informações e isso pode ser um risco para a milícia. Existe, também, uma possibilidade real da milícia obter essa informação e atuar em cima dessa denúncia, a fim de prejudicar o denunciante. Mas eles estão com poder tão consolidado dentro da estrutura policial, que eles não se veem ameaçados. Isso vai depender da avaliação do poder que ela de fato possui. Se um miliciano estiver diretamente envolvido na denúncia, ele vai atuar para se proteger”, analisou José Cláudio.

 

Ainda é cedo para se traçar um diagnóstico conclusivo em relação aos índices de violência doméstica, específico, na Baixada Fluminense sob o contexto da pandemia de coronavírus. Há instituições com suas metodologias próprias que podem ter seus trabalhos afetados, em função das medidas restritivas provocadas pela Covid-19. O próprio isolamento e o convívio diário de centenas de mulheres com seus agressores podem representar números a serem repensados, mais à frente, em função da impossibilidade de se quantificar com exatidão os casos, pois cotidianamente ameaçadas, as vítimas são incapazes de produzirem novas denúncias.