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Dupla de cineastas retrata três realidades quase simultâneas

sobre o Rio, suas periferias e violências

Com Fernando Sousa e Gabriel Barbosa

 

Entrevista concedida a Fabio Leon 

 

Fernando Sousa tem 35 anos. Graduado em ciências sociais, o que também lhe valeu o mestrado na mesma área pela UERJ. É militante desde a adolescência e percorreu o caminho clássico. Foi de Diretório Central de Estdantes (DCE), pertenceu a conselho universitário e conheceu pessoalmente um acampamento do  Movimento dos Sem Terra (MST) em Campos, no Sul Fluminense. O contato com os integrantes do movimento foi quase um desdobramento natural do DCE. Tal interlocução mudou completamente, segundo o próprio Fernando, o modo como passou a ver a vida. Sem exageros, passa a impressão de que tal envolvimento foi uma espécie de pedagogia de luta.

 

Gabriel Barbosa tem 28 anos. Natural de Barra do Piraí, também formado em Ciências Sociais, tem na bagagem um mestrado e agora é doutorando em antropologia na UFF. Ele e Fernando se conheceram quando trabalhavam na UPP Social, projeto da prefeitura do Rio de Janeiro, capitaneado pelo Instituto Pereira Passos, que promovia a interlocução entre políticas, poder público e as comunidades faveladas no âmbito das Unidades de Polícia Pacificadora.

 

Amantes de documentários, os dois resolveram colocar a mão na massa e, em 2016, surgia a Quiprocó Filmes que, ainda engatinhando, já avisava a que veio. Produziram o vídeo "Axé com Freixo", atualmente com mais de 8 mil visualizações no Youtube e incorporado a então campanha à prefeitura do deputado estadual Marcelo Freixo, membro da Comissão de Direitos Humanos da ALERJ. No vídeo, pessoas praticantes de umbanda e candomblé tentam descontruir os estereótipos preconceituosos sobre essas religiões.

 

No dicionário, a palavra quiproquó vem da expressão em latim “quid pro quo”, que significaria trocar algo. Tanto na literalidade como na metáfora, há trocas contextuais nos três documentários que estão no forno e que, em breve, farão parte do cardápio da produtora. A primeira, “Nossos Mortos Têm Voz”, conta a história de um coletivo de mães da Baixada Fluminense e de favelas do Rio de Janeiro em busca de direitos e justiça em função de terem perdido seus filhos dada a brutalidade policial. O filme é uma inciativa do Fórum Grita Baixada, do Centro de Direitos Humanos da Diocese de Nova Iguaçu e conta com o apoio da Misereor.

 

Já “Libertem Nosso Sagrado” envolve uma semelhante via crúcis pela garantia de direitos. Dessa vez de um grupo de umbandistas e candomblecistas que exige a devolução de objetos sagrados que se encontram hoje sobre custódia da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Um acervo com cerca de 200 peças apreendidas no início do século por conta de uma lei que proibia essas práticas religiosas. Segundo Gabriel, as peças sacras estão armazenadas em péssimas condições. “Estão guardadas em caixas de papelão, sofrendo com a umidade e toda a sorte de deterioração”, lamenta. Por fim, “Entroncamentos” expõe narrativas afetivas sobre a vida nas estradas de ferro que circundam a região de Barra do Piraí e de outras cidades de seu entorno, através da memória de personagens envolvidos com a época de progresso econômico na região e que hoje encaram um cenário de ruínas e abandono. 

 

Confira a conversa:

 

Vocês estão produzindo três documentários quase que ao mesmo tempo, não?

Gabriel – Sim, temos o “Entroncamentos” que está sendo rodado em Barra do Piraí. Tudo começou com a minha tese de doutorado, que pesquisa o tema e acaba virando uma espécie de roteiro para o documentário, pois os personagens estavam ali presentes no papel e agora era a vez de transplantá-los para a tela. Para viabilizar o projeto, organizamos uma ação de financiamento coletivo pelo sistema de crowdfunding. Calculamos em R$ 20 mil reais os custos, mas ultrapassamos a meta e conseguimos arrecadar R$27 mil. Tivemos apoio de instituições e tudo isso aconteceu em apenas 1 mês e meio. Agora detalhe interessante acontece nas datas. A arrecadação começou em 10 de março e terminou em 30 de abril. A data inicial era a data de aniversário de Barra do Piraí.

 

E “Entroncamentos” fala de quê exatamente?

Gabriel - Trata-se do maior entroncamento (encontro de duas vias de transporte ferroviário em que ambas são de mão dupla permitindo, portanto, entradas e saídas pelas mesmas) que ligava os estados de Minas, Rio e São Paulo. É considerado o maior da América Latina. E, por causa de um acidente em Japeri, no ano de 1996, toda essa malha, que compõe várias estações de trem do Sul Fluminense, em especial Barra do Piraí, foi privatizada, mas o transporte de passageiros foi interrompido. (Nota do redator: a região de Barra do Piraí e adjacências viveu um grande salto de desenvolvimento no fim do século XIX e começo do XX. Entretanto, as estações de trem são hoje o exemplo do abandono e do declínio desse tipo de transporte e permanecem em ruínas desde então). Com isso, as estações começaram a sofrer um processo de degradação. Nosso esforço é como, a partir dessas ruínas, reconstruir memórias afetivas desses espaços que um dia foram pontos de encontros e desencontros daquela população, identificar um modo de vida através desse fluxo. Como avaliar os impactos sociais de um lugar que viu o progresso nascer e morrer e suas consequências.

 

Fernando – A existência dessas ruínas, bem como a memória que elas provocam, condensam bem como eram as relações sociais daquela região. As estações de trem eram um local de lazer, tinham uma vida religiosa ao seu redor, eram até locais de moradia. São várias as dimensões que podem ser pensadas sobre esse modo de vida.

 

Vocês também estão produzindo o documentário Nossos Mortos Têm Voz, uma iniciativa do Fórum Grita Baixada e do Centro de Direitos Humanos da Diocese de Nova Iguaçu com apoio da Misereor...

Fernando – Bom, a minha trajetória acadêmica sempre teve a violência e o conflito como objetos de pesquisa. E a Baixada sempre esteve vinculada, através desses aspectos, a toda uma produção de pesquisas. Já existe uma série de livros e documentários que pontuam esse problema. É um cenário que, embora tenha sido amplamente discutido, ainda precisa de discussão. Que lugar é esse? A Baixada é formada por diferentes grupos humanos, mas também por grupos de extermínio. Eles têm uma legitimidade muito forte com o poder oligárquico. Existe também um desenvolvimento do tráfico de drogas, das diferentes esferas do Estado e como ele passa a ser fomentador de uma série de violações. Vou meio que movido por tudo isso. A Baixada é uma região marcada por homicídios. São contabilizados entre 40 a 60 homicídios por cada 100 mil habitantes.

 

Esse nome “Nossos Mortos Têm Voz” é muito forte. De onde vocês tiraram?

Fernando - É um grito das mães que lutam por justiça, memória e reparação pela perda de seus filhos. Estávamos filmando o 2º Encontro Nacional De Mães e Familiares Vítimas do Terrorismo de Estado (o encontro aconteceu em 19 de maio desse ano e o coletivo de mães entregou a Comissão de Direitos Humanos da ALERJ uma carta de reinvindicações pedindo justiça e a responsabilização do Estado por chacinas em favelas e outras periferias; dentre os movimentos sociais signatários do documento estava o Fórum Grita Baixada), e me chama a atenção algumas  faixas e cartazes com os dizeres “nossos mortos têm voz”. Daí saiu o nome.

 

Os pais são menos presentes nessas manifestações né?

Fernando – É uma coragem que, antes de mais nada, é alimentada por essas mulheres. Estamos falando de reinventar a vida pelo processo de luta. Apesar de sermos uma sociedade que mais mata e agride mulheres, talvez as palavras coragem e força sejam a definição que promova algum sentido a essas mulheres hoje em dia.

 

Como é o processo de acompanhamento das agendas dessas mães?

Gabriel – Através de atos, encontros, seminários, reuniões de articulação, comissões, audiências públicas, manifestos. Perdemos o número de vezes em que nos encontramos.

 

Da luta das mães por justiça temos também uma luta de praticantes de uma religião que estão sendo perseguidos...

Fernando – É o “Libertem Nosso Sagrado”. É a história de apreensão e encarceramento de objetos sacros pertencentes a terreiros de umbanda e candomblé que foram confiscados no início do século XX e estão sob a tutela do Museu da Polícia Civil. Eles estão catalogados em uma coleção chamada “Acervo de Magia Negra” e desde já observa-se o quanto a cultura afro está criminalizada nesse contexto. A apreensão desses objetos remete a um pensamento que já existia no Código penal de 1891, que tipificava curandeirismo e charlatanismo como crimes. Mas estamos falando de liturgias de matriz africana e não de promessas de cura para algumas doenças. Então o que temos, na verdade, é um processo de racismo cultural envolvido, assim como foram as perseguições com a capoeira, o samba e o funk.

 

Em que estado se encontra esse acervo?

Gabriel - Esse acervo foi tombado pelo IPHAN em 1938, mas apesar disso não impediu de a polícia ter a curadoria do acervo, algo difícil de entender. Com isso, todos os objetos encontram-se em péssimas condições. Muitos objetos estão armazenados em caixas de papelão, sujeitas a umidade, a sujeira. Ou seja, o agente que apreende é o mesmo que resguarda de forma inadequada. Foi feita uma representação ao Ministério Público para que o acervo não estivesse mais em poder da polícia e, sim, de instituições que realmente se preocupassem com a sua preservação. Para se ter uma ideia do nível de descuido e desrespeito que esse acevo sofre, recebemos a informação de que os objetos sacros foram expostos, em uma determinada ocasião, junto com peças nazistas. Qual a intenção dessa provocação ainda não sabemos. Sabemos que são em torno de 200 objetos armazenados.

 

E quais os desdobramentos resultantes dessa investigação que vocês pesquisaram?  

Gabriel – Teve uma diligência com a presença de uma técnica do IPHAN que avaliou as condições de armazenamento das peças. A partir daí, vai ser realizada uma audiência pública sobre quem, de fato, deve caber a tutela e a devida preservação das peças. Existe uma expectativa de serem retiradas e restaurá-las em função de algum dano que tenha surgido. Depois, reunir pesquisadores para que façam uma curadoria adequada, quais peças podem ser exibidas e em que termos podem ser feitas essas restaurações.

 

Pra encerrar, por que esse nome, Quiprocó?

Gabriel - Tínhamos uma turma de amigos na época da UPP Social. Comentávamos muito sobre o que acontecia nas reuniões comunitárias que fazíamos, sobre os conflitos que nasciam ali. Como há muitos discursos, múltiplas vozes falando ao mesmo tempo, fica essa ideia de confusão que também é uma das definições de quiprocó. São diferentes vozes, de forma que pessoas comuns podem ser protagonistas.

 

Fernando - A voz que queremos não é a voz estabelecida, ela é dissonante e é necessária para essas mudanças, para a rupturas. Ela pode e deve ser inconveniente, ela causa confusão. 

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Cartaz do filme "Nossos Mortos Têm Voz" com lançamento previsto para dezembro