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12 de fevereiro de 2019

CINEMA, JORNALISMO E MILITÂNCIA

Encerramento do curso de Comunicação Comunitária, do Projeto Direito à Memória Justiça Racial, do FGB, tem cinedebate sobre o documentário “Nossos Mortos Têm Voz” e presença da telejornalista Luciana Barreto

 

fotos: Fernanda Nunes 

 

Para 70 alunos, a noite de 06 de fevereiro será imortalizada como um passo para novas possibilidades. Foi o encerramento do Curso de Comunicação Comunitária, do Projeto Direito à Memória Justiça Racial, do Fórum Grita Baixada. Uma vez mais, o cenário para esse importante acontecimento foi a subsede do Conselho Regional de Psicologia (CRP), no centro de Nova Iguaçu. Durante quase 1 mês, jovens negros e periféricos da Baixada Fluminense participaram de vários módulos como “Comunicação Comunitária e Grande Mídia”, “Racismo, Feminismo e Patriarcado”, “Jornais, a Linguagem Racista e de Gênero, o Poder e o seu Papel Ideológico”, “Mídias Sociais e Comunicação Segura”, “Fotografia”, “Produção de Vídeo”, com o objetivo de formar uma rede de comunicadores para a construção de contra-narrativas em relação a mídia comercial hegemônica nos eixos de segurança pública, racismo e direitos humanos. Além da entrega de certificados, houve debate acerca do documentário “Nossos Mortos Têm Voz”, que narra a luta por justiça de um grupo de mulheres que tiveram parentes assassinados por agentes de segurança do Estado, tendo como pano de fundo a Chacina da Baixada em 2005.

 

Luciene Silva, ativista da Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense, compartilhou sua experiência de luto e luta. Ela disse que acolher uma nova integrante à rede de Mães é como se houvesse uma junção de dores na formação de uma acolhida, mas que resulta em uma força de resistência para prosseguir na caminhada.

 

“Temos que reivindicar, exigir das autoridades que isso (a chacina) não aconteça novamente. Especialmente para o povo que mora nesses territórios. Essa violência tem um alvo definido. São os jovens, negros e pobres que moram nas periferias e favelas do Rio de Janeiro. Quando se passa por uma transformação tão radical como essa, acabamos perdendo o medo. A Baixada Fluminense é um local esquecido. Tudo que acontece aqui não é divulgado. Quando acontece algo nas comunidades do município do Rio ainda temos uma referência, mas uma tragédia aqui pouco se noticia.

 

Um exemplo disso foi a chacina ocorrida na última quarta-feira (06/02), na comunidade São Simão em Queimados. Cinco jovens foram executados, 48 horas depois do assassinato de Marcelo Augusto Carneiro, um popular comerciante local também conhecido como “Marcelo da Casa Verde”.  Por se tratar de território pejorativamente categorizado como “periferia da periferia”, é de se imaginar como seria a repercussão midiática desses fatos ao se mudar a geografia dos acontecimentos.

 

O critério de noticiabilidade no lugar onde se morre

Essa questão foi levantada pela jornalista Luciana Barreto, especialmente convidada para o encerramento do curso, e que durante os últimos 15 anos foi repórter e apresentadora da TV Brasil. Um dos processos de invisibilização midiática de áreas periféricas como a Baixada Fluminense, questionamento presente, inclusive, em diversos estudos acadêmicos sobre Comunicação, tem a ver com determinados diagnósticos de contexto reproduzidos no jornalismo do mundo inteiro. Territórios que não são centros de decisão ou de influência administrativa, cultural, política, legislativa, financeira, etc, tendem a ser subvalorizados até como pautas.  Ela explica uma experiência que ilustra bem isso.

 

“Estava querendo fazer uma ampla reportagem sobre o massacre de 300 pessoas acontecida na Somália, pois já estava um pouco cansada da África quase nunca aparecer enquanto notícia. Basta acontecer um atentado nos Estados Unidos ou em alguma capital europeia para que haja uma comoção de grandes proporções, horas e horas de cobertura, dias e dias se discutindo suas causas. A vida parece que tem um valor ideológico e específico. Mas quando propus um aprofundamento sobre o que tinha acontecido (no país africano) só conseguimos produzir 30 segundos de matéria. É esse olhar condicionado que vocês vão levar para a edição, para a fotografia, para a condução da entrevista, mas vocês precisarão se perguntar o porquê estão fazendo essas produções e em qual lado vocês vão estar: do opressor ou do oprimido.

 

Ela também mencionou o fato de que a historiografia da população negra no Brasil é violentada desde a sua origem. Tal constatação é revisada ao se detectar as práticas de tortura infligidas durante o período escravocrata. Passando por trabalhos exaustivos que facilmente ultrapassavam as 16 horas de expediente, além de mutilações, ossos quebrados e o estupro de centenas de milhares de mulheres escravizadas que, após a gravidez, faziam abortos forçados ou tinham seus filhos vendidos para superlotar as senzalas. Tudo isso, segundo ela, desmistificaria a tese de que o brasileiro faz parte de um povo cordial ou pacífico, já que pouco mais de 400 anos depois, o cenário pouco se modificou.   

 

Ao mencionar o documentário “O Fim da Abolição”, no qual co-roteirizou e entrevistou pessoas representativas do movimento negro para se debater esse recorte da História do Brasil, Luciana revela o teor de uma conversa que teve o historiador baiano João José Reis, referência nos estudos da história da escravidão no século XIX. Eis o que ela contou:

 

“Quando o questionei sobre o extermínio dos jovens negros, recebi uma das respostas mais impactantes da minha vida. Ele disse que não estava querendo fazer nenhuma apologia sobre a volta da escravidão, mas talvez os nossos jovens estivessem mais protegidos quando eram escravizados, pois eles eram uma propriedade privada. E por propriedade, a polícia jamais poderia matar ou destruir alguém que “pertence” a outra pessoa, pois nessas condições seria uma infração grave.”, disse Luciana, silenciando por alguns segundos toda a plateia.

 

O sociólogo Leandro dos Santos, professor do curso de Políticas Educacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), unidade Nova Iguaçu, iniciou seu momento de fala, elogiando a militância da Rede de Mães, dizendo que “a história de luta delas teria muito mais a contribuir com as discussões aqui levantadas do que a minha presença”. Sobre o documentário “Nossos Mortos Têm Voz”, ele afirmou que o filme parece ressaltar a percepção histórica de que o Brasil seria o “país da impunidade” em função dos altos índices de criminalidade sem solução, especialmente os homicídios. Entretanto, Santos vai um pouco mais além desse pensamento.

 

“Foi lançada recentemente uma pesquisa que aponta que apenas 3% dos casos de homicídio são solucionados no Brasil. É uma impunidade que não é pra todo mundo, porque ao mesmo tempo em que existe um baixo índice de resolução desse tipo de crime, nós temos uma das maiores populações carcerárias do mundo, com quase 800 mil pessoas presas. É uma impunidade seletiva, principalmente quando nos referimos ao sistema de justiça e ao pacote de medidas contra o crime apresentadas por esse governo. O (ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio) Moro apresentou nas casas legislativas uma proposição de que o crime pode ser resolvido através de uma declaração do indivíduo, que está sendo preso, de que ele é culpado. Isso desconsidera o fato que muitas das confissões de culpa feitas por pessoas custodiadas pelo Estado foram feitas à base de tortura por agentes de segurança. Como é que se coloca o sitema de justiça com esse tipo de regra?”, indaga para a plateia o professor?    

 

A importância da Comunicação Comunitária como resistência

Encerrando a mesa de palestrantes, Luciano França, aluno do curso de fotografia, afirmou que o documentário “Nossos Mortos Têm Voz” reflete bem como os corpos pretos e pobres são tratados e se colocou como cidadão presente nas estatísticas de dor do Estado. “Sou negro, sou periférico, sou um alvo. Tenho um sobrinho que está no sistema carcerário e ele tem o mesmo nome do filho da Luciene, mas nunca podemos perder a fé naquilo que a gente acredita, por isso que estou aqui”, disse França.

 

Ao comentar sobre as dinâmicas do curso, o ativista afirmou que o curso lhe abriu diversas possibilidades, especialmente como as novas tecnologias podem ser utilizadas para a contenção da violência. Esse último comentário serviu de brecha para que ele comentasse as considerações feitas pelo professor Leandro dos Santos.

 

“Concordo com o professor em relação ao sistema de justiça. Nós somos corpos matáveis e uma prova disse é a chamada Súmula 70 que no curso de algum processo de custódia, basta haver uma declaração de um policial para que a apreensão tenha veracidade. É o estado legitimando a fala dos agentes que nos matam”, afirmou França.  

 

A aluna Ana Luisa Carvalho, da turma de fotografia e também presente na mesa, reforçou que o curso possibilitou a mesma se entender como negra e enfrentar questões dentro de sua casa.

 

Alunos das turmas de fotografia e produção de vídeo apresentaram suas produções potentes em que tratam de temas como o Afrofuturismo, Racismo, Ancestralidade, Circularidade, Memória e Diversidade Sexual e Cultural.

 

O discurso mediado pela comunicação comunitária é voltado a públicos comuns. Por ser produzido por um grupo de pessoas que partilham dos mesmos valores, pode ser destinado para várias perspectivas. Seus produtores não precisam necessariamente ser profissionais da comunicação. A pesquisadora Cecília Peruzzo em artigo intitulado  “Mídia local e suas interfaces com a mídia comunitária” escrita para  o  XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom) em 2003, assim descreve sua percepção acerca do tema.

 

“A mídia comunitária não pode ser entendida, simplesmente, como um veículo para a exposição de reivindicações. O conteúdo promovido por esse tipo de comunicação não só envia mensagens de um lado, como permite a troca de ideias por duas ou mais partes. A promoção dessa prática fortalece a criticidade dos atores que se encontram em luta por reconhecimento. Além de dar visibilidade aos atores, a Comunicação Comunitária pode ajudar a reduzir a desigualdade deliberativa que eles enfrentam”, escreve a pesquisadora.

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