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18 de novembro de 2021

Quase 1 ano depois, Governo do Estado do Rio e investigações não oferecem respostas

Fórum Grita Baixada relembra caso dos assassinatos das primas Emily e Rebecca por agentes de segurança pública, em Duque de Caxias, e reacende discussão sobre racismo e investigações de crimes de morte envolvendo moradores de comunidades periféricas     

 

Emily Victória Silva dos Santos, de 4 anos, e Rebecca Beatriz Rodrigues dos Santos, de 7 anos eram primas. Moradoras da comunidade do Barro Vermelho, em Duque de Caxias, brincavam perto dos pais e amiguinhos no meio da rua. Não eram nem 21h. Era uma noite quente de 4 de dezembro de 2020, rua lotada e vizinhos conversando sobre mais um dia puxado que se findava. Relatos de moradores afirmam que uma viatura do 15º BPM sobe a comunidade em busca de traficantes para fechar o recebimento semanal de mais um arrego. Algo dá errado e ninguém do movimento aparece para finalizar a transação. Um dos policiais, furioso, percebe o movimento de um deles na garupa de uma moto numa rua próxima e tenta acertá-lo com um tiro, “para dar um aviso”. Ao todo, três são disparados. Ignorando a presença de dezenas de moradores fora de suas casas, um dos tiros “erra o alvo” e acerta as meninas. Um único tiro de fuzil atravessa seus dois corpinhos. Rebecca tem a caixa torácica e Emily a cabeça destruídas pelo disparo.

 

Prestes a completar um ano, o episódio segue inconcluso, embora o governador Cláudio Castro tenha afirmado, à época do acontecimento, que daria prioridade em descobrir os assassinos das meninas e a Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense (DHBF) representado pelo seu delegado titular, Uriel Alcântara, eventualmente afirme às mães, quando elas o procuram, que as investigações “ainda não terminaram”. Enquanto o poder público e mídia perderam o afinco e o interesse, respectivamente, pela resolução imediata do caso, com o passar do tempo, o que resta para os familiares das meninas é administrar todos os sofrimentos psíquicos advindos do trauma das mortes violentas.  

 

Ana Lúcia dos Santos, mãe de Emily, hoje é uma mulher convivendo diariamente com os efeitos de um estresse pós-traumático permanente.  Embora receba ajuda psicológica virtual, em função da pandemia, através do Núcleo de Atenção Psicossocial a Afetados pela Violência de Estado (NAPAVE), projeto com o objetivo de oferecer espaços de acolhimento e atenção psicossocial à vítimas de violência de Estado e amparo emocional da Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado da Baixada Fluminense, ela admite que os dias não têm sido fáceis.  

 

“Eu não estou tendo nenhuma recuperação. Tenho apenas sabedoria pra continuar seguindo com a minha vida ou o que restou dela. São 11 meses sem resposta, a justiça não está sendo feita, tá muito complicado pra mim. Na terapia precisei dar uma parada porque não consigo falar sobre elas (as meninas). Fico muito emocionada e fico emotiva à toa. Prefiro ficar quieta, mas dou bom dia, para que elas me vejam que estou bem. Muita gente me ajuda de várias formas, mas eu queria respostas para as mortes. Só isso”, diz Ana Lúcia  

 

3 meses depois do crime, a primeira perícia

 

Lídia da Silva Santos é avó de Rebecca e tia de Emilly. Naturalmente, ela não apenas responsabiliza o Estado pelas mortes, mas pela morosidade na resolução do caso.   

 

“Se fosse o pessoal do movimento que tivesse matado minhas sobrinhas, a PM teria invadido a comunidade onde a gente mora e, de repente, teriam até achado quem disparou os tiros, mas nada disso aconteceu. Foi uma escolha do policial atirar nas pessoas, ele não estava em risco no momento em que isso aconteceu. Ele, inclusive, atirou de dentro da viatura. Um tiro de um único lado”, afirma Lídia.

 

Três perguntas sobre o duplo assassinato, que talvez fornecessem outros direcionamentos à investigação das mortes, ainda permanecem sem resposta. 1) O 15º. BPM poderia facilmente identificar quem é o policial que matou as meninas, pois eles têm o controle do itinerário das viaturas, em que são identificados seus ocupantes, placa, dia, hora e local das rondas ou operações. Por que essas informações não constam no inquérito até hoje? 2) Por que o oficial que comandava “a operação” não apresentou quem seria seu subordinado e potencial responsável pelo disparo? E a terceira e mais intrigante pergunta: por que somente 3 meses depois foi feita uma reprodução simulada sobre o crime?

 

A reprodução simulada aconteceu em 10 de março, no mesmo horário em que as meninas foram baleadas. Um dos objetivos era analisar melhor a luminosidade da região na hora do crime para verificar, tecnicamente, se era possível identificar o posicionamento da viatura da PM, segundo relato das testemunhas. Os depoimentos na Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense são unânimes: não havia criminosos armados ou confronto no momento em que os disparos atingiram as primas.

 

Procuramos o presidente do Sindicato dos Peritos Oficiais do Estado do Rio de Janeiro (SINDPERJ), Rafael Rocha, para que ele analisasse se os três meses entre o assassinato de Emily e Rebecca e a perícia técnica feita no local poderiam resultar em alguma dificuldade de avaliação para se constituir provas irrefutáveis que apontassem de onde partiu o tiro e, assim  responsabilizar o Estado por mais essa produção de morte. Eis o que ele responde:  

 

“Quando ocorre o homicídio, a polícia tenta estabelecer a causa da morte (suicídio, homicídio, morte acidental, etc) e perpetuar as características do local, justamente para que uma possível intempestividade do exame de reprodução simulada não seja considerada ineficaz. A reprodução simulada, pra ser considerada robusta, depende daquilo que a investigação coletou previamente. Os peritos vão precisar ter acesso ao inquérito pra obter diversos tipos de informações. Isso sem contar que é preciso ter acesso ao laudo cadavérico, de exames de balística, de laboratório, ou imagens de vídeo, caso elas existam. Acredito que nesses 3 meses, eles entenderam que tinham informações suficientes para estabelecer o exame de reprodução simulada dos fatos. O lapso de tempo pode atrapalhar, mas não significa o insucesso do procedimento”, explica Rocha.

 

Renata Rodrigues, mãe de Rebecca, relata que recebeu uma resposta de um dos policiais que faziam a reprodução simulada, em 10 de março, sobre o porquê da demora.

 

“Ele me disse que estavam muito ocupados investigando o sumiço dos meninos de Belford Roxo  e de um vereador aqui de Caxias (Danilo do Mercado, que era suspeito de ter ligações com milícias locais). Ele ainda disse que falta gente pra trabalhar”, disse Renata.

 

Quase 200 crianças atendidas em comunidade com operações policiais proibidas pelo STF

Sete meses depois do assassinato das meninas, um esforço coletivo para erguer um legado que tentasse amenizar os efeitos perversos do crime foi concretizado. Através de uma campanha protagonizada pelo coletivo de ativistas Movimenta Caxias, que contou com a divulgação de um financiamento coletivo e doações, uma delas no valor de R$ 5 mil graças a um fundo da Casa Fluminense, estruturou-se um espaço de acolhimento pedagógico que necessitava de praticamente tudo: material de construção, de escritório, sala de aula e cozinha.

 

“Se tivéssemos que comprar tudo com o nosso dinheiro, incluindo as reformas e algumas adaptações necessárias para a administração do espaço teríamos de ter desembolsado mais de R$ 30 mil, no mínimo”, diz a coordenadora do espaço, Carol Bulhões. 

 

Em julho de 2021, nascia o Espaço Emily e Rebecca. Localizado no Bairro Pantanal, em Duque de Caxias, o território é um reflexo de como são conduzidas determinadas políticas públicas em áreas empobrecidas. Basta afirmar que durante o processo de negociação para a visita de Fórum Grita Baixada ao local, foram necessárias três tentativas que se arrastaram por três semanas seguintes. O motivo? Durante o período, várias operações policiais (uma delas na pequena rua em que funciona o espaço) foram desencadeadas à luz do dia, no horário escolar, colocando em risco de morte, moradores, crianças, professores e funcionários e os pouquíssimos equipamentos públicos de ensino disponíveis, além do Espaço Emily e Rebecca.

 

Essa dinâmica que ameaça quase cotidianamente a vida de centenas de pessoas na localidade traz diversos efeitos que contribuem para o agravamento de sofrimentos físicos e psíquicos para as crianças, em sua grande maioria negras e pobres, como bem explica a diretora educacional e coordenadora do pré-vestibular + Nós, Débora Amorim, que também atua no Espaço.

 

“Aqui elas encontram um refúgio, um espaço de acolhimento, aprendem uma atividade, fazem uma refeição. Muitas delas são traumatizadas por causa de episódios de violência de Estado. Durante as operações, os agentes de segurança invadem as casas, destroem os móveis de famílias pobres. Cada interrupção das atividades aqui do Espaço, que pode levar dias até que tenhamos uma sensação de segurança de novo por causa das operações, significa que 90% das 150 crianças vão estar nas ruas da comunidade. E aí podem ser baleadas como Emily e Rebecca”, relata Débora. 

 

Essas operações são uma violação explícita a uma determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) que impôs restrições à política de segurança pública do Estado, visando o enfrentamento à brutalidade policial e ao racismo institucional. A decisão foi tomada no âmbito da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 635, conhecida como a “ADPF das Favelas”. Nela, os ministros determinaram, dentre outras medidas, a apuração das condições de segurança nas unidades da Rede Pública Municipal de Ensino localizadas próximas a áreas conflagradas. Foi expedida recomendação para “a criação de um fluxo estável de notificação de eventos com confronto armado nas imediações das escolas, a fim de possibilitar a elaboração de estudos e séries históricas”.

 

Para o coordenador executivo do Fórum Grita Baixada, Adriano de Araujo, a ADPF das Favelas foi o resultado de um grito de socorro e de urgência em meio ao grave contexto pandêmico, vivido de modo ainda mais cruel nas favelas e periferias fluminenses.

 

“Se, por um lado, nos primeiros dozes meses, a observação da ADPF 635 contribuiu para reduzir o número de tiroteios e de pessoas baleadas, por outro lado, como afirma o relatório elaborado pelo Instituto Fogo Cruzado e o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da UFF, a proporção de tiroteios com vítimas – que ocorrem majoritariamente em casos com a presença policial – se manteve estável – o que indica que o comportamento das polícias não mudou, elas apenas atuaram menos no primeiro ano da referida Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Depois dos 12 primeiros meses a situação só piorou, produzindo cada vez mais mortes e ocasionando a triste e lamentável perda das crianças Emily e Rebeca e, assim como de diversos outros moradores de favelas e periferias na Baixada Fluminense e na capital. O que o Estado brasileiro tem oferecido a esses brasileiros e brasileiras é a ação truculenta e letal da polícia. Isso é de uma insanidade e brutalidade sem medida, mas que, infelizmente acabam configurando a política de segurança pública para estes territórios pobres e negros. Com a ADPF ou não, essa é a discussão que precisa ser feita”, afirma Araujo.

 

Para além dos problemas de Segurança Pública do bairro Pantanal, o Espaço Emily e Rebecca é um ponto de resistência. Pode-se dizer que é um sopro de esperança em meio a um território negligenciado historicamente pela gestão pública local. São 1h30 de duração de atividades diárias, sempre de segunda a sexta, com funcionários trabalhando em regime de voluntariado. São pessoas que doam amor em meio a tantas invisibilidades e covardias que assolam a Baixada Fluminense. Que o trabalho continue e, sem interrupções por causa da violência de Estado 

 

 

Imagem: Carol Bulhões

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