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02 de março de 2021

Entrevista do mês: Angela Cristina Santos, educadora e pesquisadora em Educação

“Se não mudar a mentalidade política dos governantes, a evasão escolar nunca vai acabar”.

Em sua dissertação de mestrado sobre pré-vestibulares comunitários, estudiosa afirma que

é preciso urgência pedagógica ao se olhar o histórico de cada aluno(a) periférico(a). 

 

Militar por acesso à direitos nesses dias tão politicamente sombrios não tem sido uma tarefa fácil, mas há pessoas que primam pela resiliência e provam que estar no caminho certo da História, ou nesse caso, da Educação, pode fazer toda a diferença. E assim fez Angela Cristina Santos, recém mestra pelo Programa de Pós-graduação em Tecnologia para o Desenvolvimento Social, do Núcleo Interdisciplinar para o Desenvolvimento Social (NIDES) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). No ano passado, em meio à maior crise sanitária do século XXI provocada pela covid19, ela entregou a sua dissertação de mestrado intitulada “Pensando estratégias para o enfrentamento da evasão em pré-vestibulares populares: um estudo de caso Na Maré”. 

 

Moradora do conjunto de favelas, ela é professora do ensino médio da rede pública há mais de 10 anos, tendo iniciado sua carreira como educadora no Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CPV CEASM, objeto de sua pesquisa) em 2003, além de ser integrante do Fórum de Pré-vestibulares Populares do Rio de Janeiro. “Foi esse espaço favelado que me constituiu. A gente é permeada por uma série de violências, mas a principal preocupação é provocar as novas gerações de alunos para perguntar: isso é normal? Eles precisam se enxergar como seres dotados de direitos”, afirma Angela.

 

A persistência em se libertar da opressão do Estado pela educação é tanta que a interrupção de atividades em escolas da região foram um dos principais indicadores sobre a perversa política de segurança pública que assola as comunidades presentes naquele território. Seus 140 mil moradores, compreendidos em 16 favelas na Zona Norte do Rio, enfrentaram 300 horas de operações policiais e 117 dias de tiroteios somente em 2019. Os dados são do projeto "De Olho na Maré", da ONG Redes da Maré. Eles mostram que durante o período, operações policiais atravessaram o cotidiano daquela população, principalmente em quatro regiões que concentram o maior número de confrontos: Baixa do Sapateiro, Nova Maré, Parque Maré, Nova Holanda. Ao todo, foram 24 dias de escolas fechadas, o que representa 12% dos dias perdidos naquele ano letivo.

 

Voltando à pesquisa de Angela, as informações referentes à quantidade de pré-vestibulares populares existentes, tanto no Rio de Janeiro quanto no Brasil, são imprecisas ainda hoje. São projetos que se espalham por todo o território nacional, podem estar ou não vinculados à alguma instituição, possuem estrutura física e política muito variada, além de dificuldades financeiras para dar continuidade às suas atividades ao longo do tempo e se fixar em determinado espaço. Apesar das dificuldades, ela obteve fôlego e conseguiu mapear na Baixada Fluminense 65 pré-vestibulares populares, com destaque para Nova Iguaçu, com 16, e São João de Meriti com 13.

 

Por serem iniciativas de caráter popular, voluntário, militante e sem fins lucrativos, os pré-vestibulares populares se constroem e reconstroem a partir de processos dinâmicos tais como mobilização de diversos movimentos, falta de renovação do quadro de colaboradores e de captação de recursos para permanecerem ativos. Quando não conseguem dar conta dessas dinâmicas, cessam suas atividades com a mesma rapidez com que iniciaram. “Por isso, é importante e necessário um trabalho de mapeamento desses projetos e de acompanhamento periódico de suas atividades, dada a sua importância na estrutura educacional brasileira”, escreve a pesquisadora em sua dissertação.

 

Ainda segundo a pesquisa de Angela, a evasão escolar não é um fenômeno de fácil definição, identificação e classificação. Nas diversas pesquisas acadêmicas e relatórios institucionais, é produzida uma diversidade de conceituação e parâmetros sobre evasão e abandono, o que atrapalha a quantificação precisa dos casos e, consequentemente, o estudo das causas e das ações que possam propiciar melhorias nesse quadro.

 

O próprio pré-vestibular comunitário do CEASM atravessou um 2020 atípico, motivado pela pandemia, que também resultou em um processo de evasão. Angela conta que em março do ano passado, 180 alunos estavam no começo das atividades, chegando a decair para apenas 30 em dezembro. Como os próprios pré-vestibulares, segundo Angela, possuem uma dinâmica muito específica de atividades, há pouco tempo de sobra para refletir, de forma estrutural, estratégias pedagógicas que dêem conta da complexidade particular de cada aluno em seus desafios em aprender. “Se isso não mudar, a evasão sempre vai existir. Mas podemos pensar em ações que a minimizem de forma consistente. Basta ter vontade política pra isso”.   

 

Entrevista a Fabio Leon

 

As razões que fomentam a evasão escolar de pré-vestibulares comunitários são as mesmas detectadas nas escolas públicas?

Há diferenças e similaridades. O principal motor da evasão acaba sendo o trabalho. Estudantes que precisam trabalhar para ajudar no sustento da casa. O cansaço da rotina acaba colaborando também com as desistências. A evasão nunca é por um motivo único. É o marido que não gosta da ideia, a namorada que engravidou, uma série de situações. Há uma preferência em desistir ao invés de estudar e dar conta de tantas demandas. A diferença é que na escola pública você tem um público maior, mais disperso no sentido de desconhecer as possibilidades de acesso à universidade. Aqui, a galera já vem com a motivação filtrada pra continuar os estudos. Tem um sempre um amigo e um parente que indicam essa oportunidade de estudar. Mas tem a violência, a baixa autoestima, outras dificuldades de aprendizagem de maneira geral como diversos problemas de saúde (física e mental).  

 

Você escreve em sua pesquisa que “os pré-vestibulares populares constituem uma vertente importante da educação popular, propiciando espaços de reflexão de temas pertinentes à identidade, inquietudes, dúvidas, medos e ao contexto sociocultural de uma população jovem e periférica”. Na sua opinião, como essa escuta se dá de forma qualificada, ao mesmo tempo que é preciso preparar esses alunos para um ambiente competitivo e hostil que são as universidades?

A universidade vem sofrendo um processo de mudança. Hoje você consegue ir na UERJ e na UFRJ e ver muitas pessoas vindas da Maré. Tem um grupo já existente nessas universidades que fortalece a vinda dos que estão pra chegar. Os alunos daqui sabem que têm esses grupos nesses locais que vão acolhe-los, fornecer ajuda. Nós também temos um grupo de psicólogas que promovem rodas de conversa semanais para discutir as questões trazidas pelos alunos. A cada dois meses, o corpo discente se reúne para fazer avaliações não apenas do conteúdo programático, mas também de ordem comportamental, além de ter um grupo voltado para análise vocacional, que avalia as dificuldades de escolha da graduação. Nós somos um coletivo que busca escutar muito. Estimulamos essa troca entre educador e educando.  É preciso dar importância a essa troca que é o “olho no olho” para que se possa construir o conhecimento de forma conjunta. Isso acaba motivando. E quanto mais você tiver referências dentro da própria Maré, de que é possível entrar numa universidade e ter uma carreira digna, isso só facilita as coisas. Não é algo ilusório. Eles percebem que acontece, de fato. Estimulamos que os alunos se encontrem em espaços fora da sala e conversem abertamente sobre isso, para que possam conhecer uns aos outros e o espaço também. Quando alguém fica muitos dias sem aparecer, eles mesmos vão na casa do colega e perguntam o que aconteceu, se ele está bem.  Isso potencializa conexões entre nós e eles, isso é uma forma de garantir que não haja evasões. Porque se não houver afeto e troca, não haverá garantias de que os esforços empregados aqui vão se tornar concretos.

 

Como os educadores devem se comportar ao se deparar com traumas decorridas de situações-limites vividas por alunas e alunos em comunidades pobres e, ao mesmo tempo, desenvolver de forma adequada os conteúdos das disciplinas e ainda lidar com o pouco tempo de preparo para um processo extremamente excludente que são os vestibulares? 

Encontramos algumas questões. Uma delas foi perceber a existência de uma polarização política muito vinculada à religião. Nós criamos uma espécie de “comissão religiosa” para que fossem debatidos certos atravessamentos e questões do ponto de vista religioso que pudessem causar algum tipo de contratempo nas aulas. Além disso, todo mês temos uma assembleia onde são discutidos os pontos mais vulneráveis. Nem todo colaborador é um professor formado, então podem surgir desafios que precisem ter um olhar mais clínico para ser resolvido. Afinal estamos aqui para aprender também. Temos sala de aula com 40 alunos, cada um com sua trajetória de vida. Ao longo do processo, eles vão se mostrando de forma mais adequada, aos poucos. No início, as turmas são bem silenciosas e só depois é que temos mais elementos para objetivar o que precisa ser feito com mais cuidado.  

 

Você foi educanda e educadora no Pré-vestibular Comunitário do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM) que serviu de base para o seu estudo. Na sua dissertação você afirma que teve de rever conteúdos da educação básica, aprender sobre novas temáticas, conhecer novos lugares e pessoas, além de experimentar novas percepções de mundo. Por que essa reciclagem de conhecimento foi tão necessária?

Eu sou formada em Matemática e, de maneira equivocada, a área de Exatas tem pouca contribuição no sentido de se pensar a sociedade, por ser uma formação mais dura. Geralmente o professor de Exatas não se debruça muito sobre esses debates acerca de direitos humanos, por exemplo. São questões que eu tive de aprender. O calendário foi feito pra todo mundo, mas é claro que as Ciências Humanas ganham mais destaque, embora, ao longo dos anos, nós temos nos esforçado em colocar mais professores de Exatas aqui no espaço. A partir daí é que eu comecei a compreender mais a minha participação como professora de Exatas nesse debate e não me isentar. E na escola não existe isso. Nem todo professor entende que a sala de aula é um espaço de poder e desconstrução também. Por exemplo, a origem da Matemática é africana. Então sempre utilizei os saberes e conhecimentos nascidos no continente africano e como isso foi parar aqui. Fazemos aulas temáticas, explicamos como a matemática atua na origem do universo, da vida. Visitamos muito museus, feiras de ciências e vai repensando alguns conteúdos. 

 

Parte desses cursos possui um projeto político-pedagógico de formação crítica e emancipadora dos educandos, que se desenvolve por meio de ações tais como o diálogo próximo entre educadores e educandos, debates de temáticas da atualidade, aulas de campo, cine-debates, rodas de conversa, etc. Entretanto, o próximo passo, que é a chegada às universidades, vai ser, em determinados momentos, pavimentado por uma “lógica de mercado”, que vai forçar um abandono, ainda que temporário, desse molde ideológico crítico que foi construído nos pré-vestibulares comunitários. Qual a sua análise em relação a isso?  

Não esperamos que os alunos que saiam daqui e se tornem revolucionários. A maioria de nossos alunos vai pra universidade pública. Embora a gente faça algumas discussões ao longo do ano para que os alunos entendam que aquele é um espaço equivocado, mas que ele pode e deve lutar pela sua diferenciação. Então quando eles retornam pra Maré, querem fazer pesquisas diferentes, com abordagens diferentes, com elementos que eles querem trazer. Não vamos mudar todo o sistema de maneira genérica, mas podemos trabalhar algumas influências. Tem a família, o trabalho, a Igreja, outros componentes importantes na sua formação. Porém, não podemos desconsiderar que há um rompimento. Quando adentram a universidade e percebem que há todo um sistema mais “quadrado”, que não há como interferir naquele cotidiano mais rígido, é claro que há um choque.  Mas mesmo assim constroem-se redes para que ninguém fique desprotegido. Soube que há até um grupo de whatsapp de ex-alunos do Centro de Estudos que trocam diversas informações, que ajudam os que chegam e se auto ajudam com essas trocas.   

 

Você afirma, na sua pesquisa, que as instituições de educação municipais, estaduais e federais não conseguiram construir ferramentas que possibilitem enxergar, de maneira ampla, o panorama da evasão, numa abordagem qualitativa e quantitativa. Por que isso acontece?

Primeiro, porque não se definiu o que se quer avaliar. De maneira geral, os sistemas de ensino querem avaliar a evasão apenas do ponto de vista quantitativo. Ou seja, quantas pessoas evadiram e voltaram. Não há uma preocupação em se avaliar os motivos da evasão. Ou o que a escola pode fazer pela comunidade, pois estamos falando de um problema territorial e não relacionado a aspectos individuais dos professores, alunos e alunas. É preciso analisar a conjuntura. Mas não existe vontade política para se criar intervenções no espaço escolar. E mesmo assim, quando se têm os números, eles são confusos. As avaliações, nas esferas governamentais que você mencionou, são diferentes entre si. A preocupação primordial dos governos é se as escolas estão retendo os alunos e não com mudanças que possibilitem com que os alunos não sejam depósitos de gente nesses espaços. O sistema normalizou a evasão porque há uma percepção de que “o aluno não quer estudar”. Mas o aluno não decide que vai evadir. É uma série de acontecimentos e situações na sua vida que contribui pra isso. Ele acaba se desinteressando da escola, percebe que há demandas mais urgentes e interessantes fora dela. A escola faz parte de um sistema deficitário, de uma estrutura que não está interessada em resolver esse problema. Muitos pesquisadores em educação sustentam a ideia do sujeito “nem, nem” (nem estuda, nem trabalha). Já foi provado que isso é uma inverdade, pois se ele não está na escola, está nos corres ajudando a mãe, tá no trabalho informal, por exemplo. Mas como não se debate isso, prevalece o achismo.     

 

Que diretrizes seriam as mais adequadas para a prevenção do abandono e da evasão escolar tanto nos pré-vestibulares comunitários como no ensino fundamental e médio nas escolas públicas? Existe algum modelo pesquisado por você que poderia destacar como sendo o ideal?

É preciso criar uma equipe psicossocial e pedagógica que dê conta de pensar as questões que afetam os alunos. O que nos atinge na família e no trabalho vai reverberar no espaço da escola. Como essa equipe não existe, questões como a repetição de ano ou dificuldades de aprendizado jamais serão discutidas. É muito fácil dizer que o aluno é burro e simplesmente quer sair da escola. Ou então perguntar “por que esse aluno é muito agitado ou muito agressivo ou não interage com os colegas?”. Ou seja, tem-se apenas o problema, mas não se faz nenhum diagnóstico com os professores. Outra questão é se trabalhar as conexões afetivas. Não é possível pensar educação sem pensar essas conexões e como elas se dão. Criar dinâmicas e interações entre aluno e professor pra se quebrar os paradigmas de medo e hierarquia, sobretudo na favela. Sabe-se que os professores têm medo dos estudantes. Como é possível se relacionar dessa forma? De não ser capaz de enxergar o aluno como um ser potente de aprendizado? É preciso fazer uma agenda de atividades para que o aluno se sinta pertencente àquele lugar. Ele precisa construir junto com a escola. Quanto mais ele perceber que a escola é dele também, mais ele vai querer ficar nela. É se criar uma construção afetiva com o espaço. Por exemplo, que ações, ao longo do ano, podem ser feitas para que os alunos possam trazer seus pais e amigos para que também conheçam o ambiente escolar? Por que a escola não pode ser prazerosa? Os alunos gostam de trocar ideias, de relatar suas experiências, fazer com que seus interlocutores reflitam sobre determinados caminhos das suas vidas. Esse é o movimento que precisamos fazer nos espaços de educação popular e nas escolas.  

 

Além da identificação nominal de cada pré-vestibular, que outros aspectos o levantamento evidencia?

O objetivo do mapeamento que realizei foi identificar os pré-vestibulares, pré-enem’s ou pré-universitários autodenominados de populares, comunitários ou sociais e localizados no Estado do Rio de Janeiro, colhendo informações sobre endereço, contatos e redes sociais. Não foram levantados outros aspectos devido ao tempo e objetivos da pesquisa de mestrado. Atualmente está sendo desenvolvido um projeto da Fiocruz, intitulado “Tecendo Diálogos e produzindo conhecimentos: juventude, favela, promoção da saúde e ensino superior” e coordenado por Taisa Falcão, que visa fazer um mapeamento mais amplo das características dos pré-vestibulares populares com georreferenciamento.

 

Aqui na Baixada, uma das primeiras experiências com pré-vestibulares nasceu com Frei Davi Santos, (diretor executivo da ONG Educafro) e os agentes de pastoral negra. Como você vê a relação atual entre religiões e o compromisso com o acesso de pobres e negros à educação universitária pública, gratuita e de qualidade?

As iniciativas do Pré-vestibular para Negros e Carentes (PVNC) foram pioneiras no Rio de Janeiro e inspiraram diversos grupos a formarem seus coletivos e construírem seus pré-vestibulares nos anos 1990. Historicamente, as igrejas estão bastante presentes nas favelas e periferias, acessando e dialogando com as camadas populares, o que pode gerar iniciativas voltadas para as necessidades educacionais dessas pessoas. Atualmente, os pré-vestibulares populares são ofertados ou organizados por diversos grupos entre coletivos independestes, associações de moradores, organizações não governamentais, instituições de ensino públicas e privadas, grupos de igrejas católicas, grupos de igrejas evangélicas, grupos de religiões de matriz africana, movimentos sociais oriundos de partidos políticos e outros. Isso aponta para diversidade da conformação desses projetos, inclusive no que diz respeito aos compromissos estabelecidos nos projetos político-pedagógicos adotados.