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Entrevista do Mês: Lúcia Murat

A dama da guerrilha e da reflexão

Fórum Grita Baixada conversa com a cineasta que mais problematizou o Brasil em sua obra.

Diz que seu cinema não é panfletário e relata sua angústia em depor na Comissão da Verdade

 

Prestes a fazer 70 anos de idade, é difícil realizar uma conversa com a cineasta Lúcia Murat e se dispor a falar apenas sobre cinema. Cada filme seu é um recorte historiográfico específico que merece ser analisado por horas. Sua filmografia fala de quase tudo: favela, violência urbana, tráfico de drogas, protagonismo feminino, reflexões sobre a luta armada, corrupção político-partidária, exploração dos povos indígenas, mas acima de tudo, de resistência. Participou do movimento estudantil e em dezembro de 1968, entrou para a luta armada integrando o MR-8. Presa pela repressão do regime, em 1971, passou três anos e meio encarcerada na Vila Militar, no bairro do Realengo, zona Oeste do Rio de Janeiro, onde foi torturada por meses. A dolorosa experiência resultou em um de seus primeiros sucessos, o drama-documentário “Que bom te ver viva" (1989), com Irene Ravache. Depois vieram "Doces poderes" (1996), "Brava gente brasileira" (2000), Quase Dois Irmãos (2004) e tantos outros. Ano passado, lançou seu mais recente trabalho, o suspense em tons psicológicos “Praça Paris”, que aborda como a violência urbana e doméstica interferem diretamente na vida de duas mulheres, uma psicóloga e sua paciente, através de uma “troca de papéis” que vai reconstruir suas identidades para sempre. Confira a entrevista feita em seu apartamento no Jardim Botânico.   

 

Por Fabio Leon

 

Você sobreviveu a uma das mais sangrentas ditaduras da América Latina. Ao mesmo tempo estamos vivendo sob a égide de uma intervenção militar federal no Estado do Rio de Janeiro e seu novo filme “Praça Paris” (2017) fala sobre o medo e a paranoia gerada pela violência urbana sob o âmbito das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP´s) que promoviam a militarização da vida. Como é feita a conexão do seu filme com essas narrativas bélicas que estamos vivendo atualmente?

 

Praça Paris vem muito da nossa realidade e é inspirado em um fato. Nessa ocasião eu tinha uma amiga psicanalista que conhecia um grupo de profissionais da saúde mental na UFRJ que fornecia apoio a moradores da alta classe média. Ela me explicou que tinham algumas moças que, em função de episódios de violência, começaram a ter problemas de perseguição e estavam atravessando um processo de “contratransferência”.  Eu pensei: isso daria um belo thriller (filme de suspense). Quando eu obtive recursos para tocar esse projeto, a decadência das UPP´s era clara. Mesmo assim, conseguimos subir o Morro da Providência (onde se passa parte do filme) para fazer um trabalho de pesquisa e locação, chegamos a conversar com algumas ONG´s. E precisávamos ser rápidos. Infelizmente não podíamos ficar ali muito tempo. Nessa época, já estávamos desenvolvendo o roteiro, trabalhando com o contexto da polícia estar parcial ou completamente corrompida e de o tráfico estar reassumindo os territórios. Já estava claro pra nós o que estava acontecendo. Infelizmente, só fizemos umas tomadas externas do Morro da Providência por questões de segurança. No período em que tentamos filmar na Providência, ocorreram três tiroteios, inclusive com morte. As imagens internas tiveram que ser feitas na comunidade da Tavares Bastos, no Catete. Mas voltando a falar sobre a classe média, o filme aborda o quanto ela também vai se tornando mais violenta, medrosa, racista. E o mais curioso é que o contato que ela tem com a violência é muito mais causado pela sensação de insegurança sobre o que ela vê na mídia, é mais transversal do que qualquer outra possibilidade !. Ela jamais vai morar em uma comunidade, vai ter esse contato direto, mas ela vai ser a mais paranoica e reativa a ponto de se tornar reacionária por causa da paranoia da violência. A classe média não tem mais empatia com todos àqueles que pertencem a “cidade partida”. 

 

E essa paranoia da personagem Camila (interpretada pela atriz portuguesa Joana de Verona)  reflete o que almeja a nossa sociedade conservadora, de sempre exigir das autoridades soluções automáticas sobre a questão da violência urbana?

 

Soluções tão conservadoras quanto quem alimenta esse conservadorismo né? Temos um crescimento do conservadorismo da sociedade muito grande. É espantoso como isso se desenvolve. Infelizmente existe essa fantasia de que os militares vão resolver tudo. Querê-los como solução significa que você não foi a fundo na História, principalmente sobre a ditatura militar brasileira. Os torturadores não foram punidos, diferente do que aconteceu no Chile e na Argentina, pelo contrário, aqui no Brasil tentaram esconder o máximo que puderam. Então quando hoje você percebe que existem pessoas favoráveis à volta dos militares, de uma outra ditadura, isso é muito preocupante.        

 

O quanto da jornalista Lúcia Murat está nas narrativas criadas pela cineasta Lucia Murat?

 

Eu tive uma vida muito particular, em função de viver parte da adolescência e da vida adulta na clandestinidade. Então isso tudo fez com que minha relação com a violência. Só ingressei no cinema depois que saí da cadeia e após minha passagem como jornalista. Só dois anos depois é que comecei a fazer cinema, mas que também tinha uma pegada jornalística. Essa pegada tem uma necessidade minha de sempre me aprofundar. Acabo de fazer filmes muito penetráveis nesses campos do conhecimento, tanto que a linguagem do documentário tem essa interferência. O “Que Bom te Ver Viva” é explícito nesse sentido, pois adota essa linguagem, pois envolve pré-entrevistas, pesquisa histórica. Mas até nas histórias de ficção eu uso esse método. E a pesquisa histórica acaba contribuindo até para um melhor desenvolvimento da estrutura dramática. Ou para que um documentário possa ter um pouco da estrutura dramática da TV. Essas duas experiências de vida, a ficção e o documentário acabaram se penetrando muito.

 

Nós estamos vendo uma espécie de jornalismo como há um certo tempo não se via com tanta intensidade. Repleto de pragmatismo ideológico, informações pela metade, comprometido com a parcialidade dos fatos, principalmente na composição de ataques a agendas, movimentos ou instituições ditas progressistas. Como você analisa essas novas formas de narrativas contra-hegemônicas, que parecem ser uma alternativa ao fazer convencional do jornalismo? 

 

Esse jornalismo não convencional está em xeque. Na época em que eu exercia o jornalismo, a profissão era preto no branco, como se dizia. Ou seja, você já tinha os lados pré-determinados. Quando eu era do movimento estudantil nós fazíamos manifestação contra o jornal O Globo. Você tinha na ditadura a censura, que cercava os jornais contra o regime e os jornais que apoiavam, acabavam gozando de certa liberdade, apesar de, mesmo com essa contrapartida, haver algumas restrições. Hoje em dia é mais difícil você identificar uma linha editorial mais explícita, digamos assim, apesar de haver conglomerados midiáticos em torno de uma proposta única. E tem as redes sociais que alargaram mais os lados da discussão pública. A mídia impressa está em franca decadência, com números por tiragem cada vez mais inexpressivos. Com as redes sociais vem o fenômeno das fake news. 

 

Ou da contrainformação 

 

Pois é. Você tem possibilidades muito maiores de se informar com as redes sociais, mas elas também trazem um universo de desinformação ou informação deformada. Se você tem um jornal que defende determinada ideologia política você já toma aquela precaução na leitura. Ao contrário que na rede social, você não encontra mecanismos de precaução sobre o que é notícia verdadeira da falsa.

 

Você escolheu o cinema pra contar como a história do Brasil interferiu diretamente na sua?

 

O cinema apareceu pra mim de forma muito circunstancial, em 1978, quando já estava trabalhando no jornalismo que naquela época era muito próximo em termos de suporte. O Globo Repórter, por exemplo, era feito em película, tinha um tratamento quase documental. Eu comecei a fazer amigos da área cinematográfica, meu ex-marido fazia cinema. Até que aconteceu a Crise da Nicarágua quando os sandinistas invadiram o congresso.  E eu propus: “vamos fazer um filme na Nicarágua”. Eu tinha umas economias aqui, gastava com sabedoria, não tinha filhos e então foi mais fácil. Foi o que depois, de forma muito jocosa, chamou-se de “cinema de guerrilha” (risos). Eu tive essa intenção por recuperar um pouco da minha geração latino-americana que havia se perdido do que necessariamente, fazer um trabalho autoral de cinema. Aí nasceu o documentário “O pequeno exército louco” . Eu devo muito ao cinema a minha própria sobrevivência. Eu devo a ele mais do que qualquer outra coisa.  

 

Você fala abertamente sobre as torturas que sofreu a partir do momento em que era integrante do MR-8 em 1971. Mas o que significa para a sua subjetividade, mencionar isso de tempos em tempos? É terapêutico, de certa forma, falar sobre isso ou é uma adaptação ao procedimento jornalístico que insiste em explorar essas mazelas como critério de noticiabilidade?

 

Na verdade eu não falo sobre isso. Esses relatos já estão em meus filmes. Claro que com certo distanciamento, afinal de contas, você está trabalhando com ator, atriz, pesquisa...obviamente que colocando muita coisa de você quando se propõe àquilo que está sendo feito. E é bom discutir esses valores, o que foi impactante e doloroso pra você. Falar é muito raro. E é muito difícil. Quando fiz o meu depoimento à Comissão da Verdade  foi um processo muito doloroso. Eu preferi escrever o que ia dizer a ter um discurso livre, pois eu acho que iria desabar ali. As pessoas sabem que você foi torturada, mas quando o acesso aos detalhes dos sofrimentos é escancarado, as pessoas ficam muito espantadas.

 

Você chegou a titubear em prestar seu depoimento à Comissão da Verdade?

 

Não, não. Achava que era uma questão fundamental. Eu pensava comigo: “tenho que fazer”. Eu ter sobrevivido era como um dever a ser prestado para com as pessoas que foram assassinadas pelo Estado brasileiro. Houve mais repercussão da minha fala na Comissão através das redes sociais do que eu jamais obtive em nenhum filme meu, mas considero isso muito importante sob o ponto de vista da denúncia. Entretanto, como disse antes, não se consegue, no Brasil, se levar torturadores ou responsáveis pelas torturas para o banco dos réus. A ONU chegou a exigir das autoridades brasileiras um processo de investigação sobre o desaparecimento do Rubens Paiva, da qual fui testemunha. Parece piada, pois de ano em ano me liga um procurador para marcar uma audiência, mas o Exército sempre entra com uma liminar adiando o depoimento.  

  

O cinema nas décadas de 1960 e 1970 quebrou paradigmas sociais, de comportamento, ditavam tendências, ajudavam a reinventar a cultura. Hoje a transposição desses pequenos rompimentos se encaminhou para as séries de TV. O cinema ficou mais careta? Há mais liberdade criativa ou editorial na TV do que no cinema?

 

Não sou fã de séries. Elas têm um limite, acabam se reproduzindo de uma maneira tal que a história se esvai. Você tem um bom piloto, mas depois vêm as tramas paralelas e não têm como você escapar da novelização. Até estou fazendo uma série, mas ela é mais documental. Fala sobre a repercussão de um relatório produzido no governo Figueiredo sobre violações de direitos indígenas.

 

Desde a época do Cinema Novo, já havia uma proposta muito interessante de linguagem experimental, já que era uma escola de cinema feita por um grupo social representativo. De lá pra cá, as novas gerações se impuseram de fato, com propostas de buscas identitárias. O cinema enquanto realidade tem aberto essa discussão. Não acho que ele deva estar somente correlacionado ao grande espetáculo. O tipo de cinema que faço, que é mais autoral, precisa de uma sala escura para a sua imersão. É uma experiência coletiva de reflexão, de pertencimento àquela narrativa. É uma experiência fantástica. 

 

Pegando três filmes seus “Olhar Estrangeiro”, “A Memória que me Contam” e “Quase Dois Irmãos”, eles tocam em temas controversos, mas não têm a obrigatoriedade de fornecer respostas prontas para os contextos ali apresentados. Mas em algumas entrevistas que li, parecia haver a intenção, entre alguns de seus interlocutores, de provocar um posicionamento mais determinante sobre sua obra. Você observa essa pressão por respostas? O seu cinema precisa dar essas respostas?

 

Eu fico irritada, na verdade. Principalmente quando tentam rotular o meu cinema como político. Nós praticamos política todos os dias das mais variadas formas. Mas quando se fala que determinada pessoa faz “cinema político” é pra tentar diminuir, pra dizer que você está fazendo cinema panfletário, dogmático, ideológico ou coisa do tipo. Muitas vezes eu percebi isso em alguns dos meus interlocutores. Obviamente eu reajo a isso. Nunca tive a intenção de passar alguma mensagem em meus filmes. Mas foram todos frutos de algum tipo de angústia ou ansiedade que eu tinha e trabalhar em cima disso. Eu faço uma comparação aos meus primeiros filmes, cuja frescura até me permitia cometer alguns “erros”. Mas naquela época eu podia errar. Errar também é bom. 

 

 

SAIBA MAIS

O conceito de contratransferência

 

ALGUNS FILMES CITADOS

Olhar Estrangeiro

 

A Memória Que Me Contam

 

Quase Dois Irmãos

 

 Que Bom Te Ver Viva