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14 de janeiro de 2019

“ME AGARREI À MILITÂNCIA PARA NÃO ADOECER”

Na primeira entrevista de 2019, conversamos com a ativista Luciene Silva, representante da Rede de Mães Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense sobre sua história de luto que virou luta.

 

 

Luciene Silva tem 52 anos de idade. Define sua história como sendo a de uma mulher comum que veio da periferia de Nova Iguaçu. Mas a peculiaridade de sua trajetória começa ao se contabilizar os tantos lugares pelos quais passou. Nasceu no hospital Getúlio Vargas, na Penha, a mãe morava em Cordovil, a adolescência passou em Irajá, tendo uma rápida passagem por Brás de Pina, parando tempos depois em conjunto habitacional de Belford Roxo. Conheceu o marido aos 18 anos e em 2019 celebra as bodas de coral, a longevidade matrimonial de quem está casada há 35 anos.

 

Mudou-se para a terra da garoa, residindo na região por 3 anos em função do desemprego do marido, que lá encontraria novas oportunidades de trabalho. Os sogros tinham um comércio em funcionamento que logo teve de fechar as portas em função de um episódio de violência envolvendo  um cliente embriagado. Após o casamento e a temporada em São Paulo, Luciene retorna para Cerâmica, bairro da periferia de Nova Iguaçu, onde teve quatro filhos: Rodrigo, hoje com 32 anos, Rafael, Ronnie e Thaynara. Pergunta-se como foi para uma mãe criar 4 filhos, com as transformações próprias da idade. Resposta: “Os meus filhos sempre foram tranquilos, estudiosos, amantes dos esportes. Nunca foram adolescentes propensos a noitadas, não bebiam ou fumavam”.

 

Alguns anos depois, em 31 de março de 2005, vem a tragédia. Rafael foi morto em plena via Dutra, no triste episódio que ficou internacionalmente conhecido com a Chacina da Baixada. Ele e mais 28 pessoas foram assassinadas por policiais militares em Nova Iguaçu e Queimados, esta que é considerada a maior matança coletiva oficialmente registrada no Estado do Rio. Logo depois do ato criminoso, tomou conhecimento de algumas iniciativas como os movimentos AFAVIV (Amigos de Familiares de Vítimas de Violência), Reage Baixada, no qual ingressou para, enfim, compor a Rede de Mães Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense que, dentre tantos objetivos, luta pelo direito à memória e justiça social, políticas de reparação psicossocial e econômica para as mães de filhos assassinados por agentes de segurança do Estado.

 

O relato de sua reivindicação por justiça, assim como o de outras mães e parentes de vítimas de mortes brutais cometidas por agentes de segurança do Estado, circula em várias exibições Rio de Janeiro afora desde abril de 2018, quando foi lançado o documentário “Nossos Mortos Têm Voz", produzido pela Quiprocó Filmes, com apresentação do Fórum Grita Baixada e do Centro de Direitos Humanos da Diocese de Nova Iguaçu.

 

A partir daí, Luciene traz consigo, nas palestras que realizou ao longo do ano, mediante a divulgação do documentário, uma série de impressões e reações das pessoas que testemunham seu relato de superação e de incidência política. Ela diz que as falas da Rede de Mães fornecem uma nova dimensão, muitas vezes desconhecida do grande público, sobre as vicissitudes do que é pertencer a esse tipo de ativismo e as razões que levam a tal decisão. “O olhar muda. Eu vejo na fisionomia das pessoas essa desconstrução acontecer, de como só a partir daquele instante é que elas percebem o quanto elas estavam enganadas”. Entre abraços de solidariedade e lágrimas entremeadas por sorrisos de compaixão, Luciene ouve quase que religiosamente que muitas mulheres jamais teriam a força de vontade que ela tem. Eis os porquês.  

 

Entrevista a Fabio Leon

 

De que forma a morte do seu filho impacta a sua vida?

Minha vida deu uma guinada de 180 graus. Deu uma desabada na minha cabeça porque mesmo tendo uma família muito unida, estruturada, uma tragédia dessas traz consequências e sequelas terríveis. Vivíamos dentro de uma zona de conforto. Eu era tranquila, sossegada, criando meus filhos sem problema algum sem ter noção do que passava a minha volta. Pra mim as coisas ruins sempre aconteciam com outras pessoas. Esse tipo de coisa jamais aconteceria com minha família. Porque sempre escutamos as notícias de troca de tiros, que alguém fez alguma coisa errada. Então se um jovem morre, é porque ele “procurou” aquilo, pois estava se misturando “com quem não deve”, porque estão vinculados ao tráfico.

 

Isso é uma observação que você sempre reforça em suas palestras sobre o documentário Nossos Mortos Têm Voz. Quantas vezes você tentou desmistificar a teoria de que o assassinato de um jovem periférico tem de ter suspeitas de uma possível culpa sobre sua própria morte?

Várias vezes... Eu tenho uma irmã que mora no exterior, casou-se com um suíço quando eu tinha 13 anos e pra lá ela se foi. Quando aconteceu a chacina, a notícia estava em alguns jornais da Suíça. O que ela leu é que o fato tinha acontecido numa zona periférica e perigosa, onde havia muita criminalidade. A minha irmã jamais pensou que o sobrinho dela pudesse ter ligação com qualquer coisa desse tipo. Até que se apurasse que nenhuma daquelas 29 vítimas tinham envolvimento com tráfico, passagem pela polícia, a impressão que os jornais suíços passaram era de uma área onde só tinha criminalidade. Como se isso justificasse aqueles policiais fazerem o que fizeram.  

 

A especulação já tinha sido criada...

Exatamente. E minha irmã tomou um choque muito forte, mas logo depois ela soube da verdade. Só após as investigações e quando os fatos foram apurados é que houve o desmentido fora do país, de que aquilo tudo foi uma grande covardia, que foram policiais que fizeram aquela barbaridade. A partir daí comecei a abrir meus olhos para o que estava acontecendo ao meu redor. Nunca me incomodei com nada nesse sentido porque essa tragédia não tinha invadido a minha casa. E esse pensamento é o de todo mundo. “Meu filho nunca vai morrer nessas circunstâncias, porque ele não tem envolvimento com nada”. 

 

Foi logo depois da tragédia que você conheceu a Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado na Baixada?

Depois da tragédia, eu fiquei 9 meses em São Paulo. Meu marido estava trabalhando lá em outro emprego com o antigo patrão dele, mas ele só conseguia aparecer aqui duas vezes no mês. Ele não queria ficar longe dos filhos e eu estava me organizando para ir embora. A morte do Rafael apenas apressou essa decisão. Depois fiquei sabendo, meses depois, que a prefeitura de Nova Iguaçu estava procurando as famílias das vítimas para negociar uma espécie de indenização. Foi na mesma época que o Centro de Direitos Humanos da Diocese de Nova Iguaçu havia feito um movimento chamado “Reage Baixada”, em que várias instituições se juntaram em um fórum para se discutir a violência na região a partir da chacina. Uma das mães, cujo filho também morreu na chacina, me procurou dizendo que a prefeitura queria conversar e marcaram uma reunião. Conversamos diretamente com o (então prefeito) Lindbergh (Farias) que disponibilizaria, através de decreto, a contribuição no valor de um salário mínimo para as famílias durante um ano, pois muitos dos que morreram na chacina sustentavam suas famílias. Tínhamos também atendimento psicológico, terapia em grupo e me lembro que já existia um grupo chamado FAVO (Familiares de Vítimas Ocultas), pois na Baixada tem muito caso de desaparecimento forçado. Tinha vários grupos separados e resolvemos unir as poucas mães que ainda estavam dispostas a fazer militância e formamos o grupo. Hoje somos 12 pessoas e mais mães estão querendo se juntar a nós. Temos algumas ali no Km 32 que se interessaram em nossa luta e querem participar também. Infelizmente a gente não pode esperar que elas venham com as próprias pernas. A gente tem que ir lá buscá-las. 

 

E como você conheceu o Fernando Sousa e o Gabriel Barbosa, os diretores do filme “Nossos Mortos Têm Voz”?  

Foi em uma das reuniões que tivemos no Cenfor (Centro de Formação de Líderes, em Nova Iguaçu). Eles pediram para acompanhar toda a organização da caminhada pelos 12 anos da Chacina da Baixada (realizada todos os anos desde 2006). Eles falaram da ideia de se fazer o documentário, sobre como seria e se eu queria participar. Filmaram parte do meu cotidiano, da minha casa.

 

Você ficou com receio de expor a sua tragédia em público?  

Não, porque não foi o primeiro documentário do qual participei. Já fiz dois anteriores a esse.

 

Quais foram?

É o “Eu Luto Como Mãe”, do Luís Nascimento, que teve muita sensibilidade ao fazê-lo. Ele é mais pro lado da emoção mesmo. Lá tem imagens sobre o julgamento da chacina e o filme chegou a participar do Festival do Rio. E tem também o “À Queima Roupa”, da Theresa Jessouroun. Esse é mais pro lado da denúncia, mais pesado, mostra os corpos baleados sabe? Tem entrevista com uma mãe do Complexo do Alemão por causa daquela invasão em 2007 que botou uma peruca e uns óculos escuros. Tem um X9 da polícia que também contou tudo, os mínimos detalhes da invasão, que também está disfarçado. Mas eu fui a única que mostrou a minha cara para todo mundo ver.

   

Mas de onde vem essa coragem?    

Mas não se trata de coragem! Eu não preciso me esconder porque eu não sou a criminosa. São eles! Se eu não mostro o meu rosto, seria a mesma coisa que eu não tivesse denunciando nada. Não estou criticando quem tem medo, mas eu não consigo fazer isso. Não me sentiria à vontade se fosse pra me esconder. É lógico que eu também tenho medo, mas nessas ocasiões eu tive forças para falar abertamente. Já com os “Nossos Mortos Têm Voz” eu nunca pensei que ia ter a repercussão que teve.

 

Com essa repercussão, você acabou se tornando personagem para várias pautas jornalísticas, principalmente quando o assunto é violência na Baixada. Eu me lembro de uma situação em que um jornalista televisivo tentou, de todo jeito, fazer você chorar, talvez para criar um impacto visual ou um apelo dramático na cena. Mas você se manteve firme. Essa situação se repetiu com outros profissionais da mídia? Como é a sua relação com eles?

Comigo só aconteceu uma vez. Eu, às vezes, me sinto um objeto de exploração, um pouco desrespeitada, sabe? Pelo fato de me sentir manipulada para fazer aquilo que você quer, pra te privilegiar ou demonstrar que você fez um bom trabalho às minhas custas. Hoje em dia, eles (os profissionais da imprensa), já me conhecem bem e sabem que não vão conseguir me colocar no papel da vitimazinha, de coitadinha. É isso que vende, que dá ibope. Tragédia, choro, desespero. É essa a imprensa que nós temos. Tanto que eu falo com as outras mães: se algum repórter quiser te colocar nesse papel, não faça isso. Não se coloque na posição de vítima. Nós somos sobreviventes dessa realidade que vivemos hoje, dentro desse contexto de preconceito, desrespeito. Porque nós, as mães pretas e periféricas, somos os alvos. As outras mães, no início, até choravam, mas com o passar do tempo eu fui falando com elas para evitarem esse comportamento. 

 

Uma outra curiosidade que sempre tive sobre o documentário Nossos Mortos Têm Voz e que se fortaleceu nesse quase um ano de exibições foi em relação a sua tragédia pessoal. Você sempre dissecando a sua dor perante vários públicos, a sua narrativa de luto se repetindo. Como você lida com isso?

Eu não vou dizer a você que isso é uma tarefa fácil, principalmente no início tive alguma dificuldade. Quando comecei a frequentar as reuniões do Reage Baixada, comecei a ser muito conhecida na região de Nova Iguaçu. Eu era “a mãe do menino que tinha morrido na chacina”. Comecei a ser convidada para ir em alguns espaços e passei a ir sem ser convidada mesmo (risos), pois queria conhecer melhor a realidade da cidade. Fui a várias audiências públicas, estive numa conferência promovida pelo gabinete de gestão integrada do (então governador do Rio de Janeiro) Sérgio Cabral sobre a questão da violência...Mas eu sempre tive muita fé dentro de mim. Se não temos determinada força para fazer algo, Deus nos dá. Além disso, eu fiz uma promessa para o Rafael. Quando eu enterrei ele, prometi que jamais iria deixar ninguém esquecer o que aconteceu no dia 31 de março. Não apenas organizar todo ano a caminhada que percorre os locais das mortes, como ir em todos os lugares e falar sobre isso. Falar sobre ele é uma forma de prestar uma homenagem. Pra mim, é uma ajuda falar sobre meu filho. Antes, eu estava em estado de choque, eu não conseguia chorar, eu não berrei, não me desesperei, pois fiquei preocupada com meu marido e meus outros três filhos. “Eu preciso cuidar da minha família”, pensava o tempo todo. Então, tudo o que eu deixei preso naquela época, eu solto nas exibições do documentário. Exponho toda a minha indignação, toda a minha revolta por nada ter mudado, pelo o que aconteceu e pelo o que ainda está acontecendo. A cada dia temos mais mães aflitas, com medo. Eu não tive problemas de saúde ou mentais como depressão porque eu me agarrei à militância.  

 

E como é fazer esse tipo de militância na Baixada?

É bastante complicado, pois a Baixada é um mundo e temos limitações de deslocamento, os lugares são muito distantes um do outro. Além disso, tem a questão financeira, são pessoas pobres, de periferia, com poucos recursos, muitas delas estão desempregadas ou dependem só do marido. Não podem tirar o que é destinado para as despesas de casa, apenas para participar de reuniões, pois são duas passagens de ônibus que precisam ser gastos e isso pra elas é muito. O grupo de mães no Rio tem mais facilidade de deslocamento, há mais proximidade entre os locais de suas casas e as reuniões, seminários, etc. É muito difícil irmos a um encontro com elas e é muito difícil elas aparecerem por aqui. O que estamos querendo fazer é construir nos nossos territórios equipamentos com esse trabalho e com essas famílias. E ter profissionais da saúde para atender a essas famílias, o que também não é fácil pois não é qualquer psicólogo ou psicóloga que faz esse tipo de atendimento. Além disso, trabalhamos e vivemos em lugares perigosos, com pessoas com medo do tráfico, da milícia, da polícia, dos grupos de extermínio...então não podemos sair simplesmente pelo bairro e perguntar “onde tem uma mãe cujo filho foi assassinado ou está desaparecido?”. E ainda tem o problema de que um desses matadores pode ser o vizinho de uma dessas mães. Eles moram nas mesmas localidades das pessoas que eles transformaram em vítimas. A maioria das mães sabe quem matou seus filhos. Se houver alguma desconfiança nesse sentido (sobre alguma delas procurar ajuda de algum órgão de Direitos Humanos), ou elas vão ter as famílias ameaçadas ou vão ser expulsas de onde moram. 

 

Como é o estado psicológico e psiquiátrico dessas mães?

Muitas delas acabam perdendo o casamento né? Porque o pai culpa a mãe pela perda, a mãe culpa o pai pela perda. A mãe sofre e o pai não admite esse sofrimento porque o filho “procurou aquilo ali”. Tem muito julgamento moral em cima disso. “Ele não tinha nada que estar ali, ele tava fazendo coisa errada!”. Isso quando o resto da família não culpa a mãe porque não conseguiu tirar o filho do caminho que ele escolheu. “Você deu mole, deixou ele muito solto, você não via com quem ele andava, não conhecia as amizades, não deu limites”, são várias interrogações. Mas eles não entendem que o fato está consumado. Por mais que a mãe possa ter tido as suas falhas, ela está sofrendo também! Não há respeito para isso. Fora os casos de depressão, aí não quer mais ter relações sexuais com o marido, que se estressa ainda mais, não consegue cuidar dos outros filhos e, pra piorar, o marido não entende nada disso! Ainda tem os casos em que o casamento já não estava bem e desmorona de vez com a tragédia. Aí as brigas vão se amontoando e a dor aumenta mais, o ressentimento aumenta mais e o casamento acaba. Isso acontece muito! E tem as sequelas físicas como infartos, AVC´s (Acidente Vascular Cerebral), hipertensão, diabetes, câncer.

 

Existem vários grupos de atendimento para reparação psíquica como o NAPAVE* que, inclusive, presta esse serviço para a Rede de Mães. Queria que você me contasse um pouco sobre a importância de se ter esse tipo de acompanhamento.  

O documentário foi muito importante para que a Rede de Mães pudesse se levantar. Quando levamos esse debate para vários lugares, passamos a ser conhecidas e conseguimos apoio de vários parceiros e acabamos conhecendo o trabalho e o pessoal do NAPAVE que nos ajudam a sobreviver depois de uma tragédia como essa. Essas mães que não conseguem mais ter uma vida normal como esposa, mulher e ser humano precisam se tratar psicologicamente para que elas tenham cabeça para recomeçar a viver. Como elas não têm em suas próprias casas o espaço para vivenciar o luto, falar sobre sua perda e chorar, nos encontros com o NAPAVE ela acaba tendo tudo isso. Ela pode se dar ao luxo de recordar os momentos felizes que passaram juntos! Tudo isso sem precisar ser julgada. Não se questiona nada.

 

*sigla para Núcleo de Atenção Psicossocial a Afetados pela Violência de Estado, projeto financiado pelo Fundo de Combate à Tortura da ONU, e que conta com apoio institucional do Instituto Superior de Estudos da Religião (ISER); é uma junta de psicólogos que fazem serviços de atendimento para reparação psíquica em vários grupos vulnerabilizados, incluindo a Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência da Baixada.