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05 de setembro de 2018

Entrevista do mês: Maria de Fátima da Silva

“Não adianta fazer trabalho social sem pensar na prevenção dos males”

 

Maria de Fátima da Silva é pedagoga formada pela UERJ. Forjada na militância da Pastoral do Menor, da Igreja Católica, é ex-moradora de Parada Lucas, nas proximidades de Vigário Geral, zona norte do Rio, onde viveu dos 6 aos 21 anos. Filha de governanta de um general, sentiu na pele os contratempos que rodeiam moradores de periferia: desde dormir coberta com sacos plásticos na cabeça para se proteger de gotas d´água advindas das chuvas que encharcavam seu barraco até ajudar vizinhos a se proteger das ameaças de incêndios na regiã . Sempre teve no combate ao abismo social entre crianças, a sua razão de viver.

 

As lembranças da infância a deixam perplexa até hoje. O cenário de subnutrição, a falta de infraestrutura das habitações e as condições sanitárias das mesmas, onde não raras vezes, ratos adentravam a casa dos moradores. A primeira luta política em prol das crianças se deu quando começou a trabalhar na associação de moradores da comunidade onde passou boa parte da vida, para reivindicar a construção de uma creche. Não só conseguiu trazer o aparelho público, batizado de Creche Popular Chico Mendes, como acabou se tornando a presidente da associação. Também chegou a participar das chamadas “emendas populares” para a elaboração da Constituição da República de 1988, em que grupos organizados de diversas localidades do país podiam enviar sugestões para a Assembleia Constituinte com fins de propor leis que hoje compõem a Carta Magna.

 

Com passagens em várias instituições de acolhimento e de assistência social para crianças e adolescentes, a História iria provocar um atravessamento inesperado na vida de Maria de Fátima. Na noite de 23 de julho de 1993, pouco antes da meia-noite, dois Chevettes com placas cobertas pararam em frente à Igreja da Candelária, Centro do Rio de Janeiro, no episódio conhecido mundialmente como a Chacina da Candelária. Em seguida, os ocupantes atiraram contra dezenas de pessoas, a maioria crianças e adolescentes, que estavam dormindo debaixo de marquises nas proximidades. Uma das vítimas era o menino Joilson, que era cuidado pela instituição em que Maria de Fátima trabalhava. Uma semana depois do massacre, ela ajudou a fundar o “Movimento Candelária Nunca Mais”. “O grupo foi criado a partir da missa de sétimo dia dos meninos. Dom Eugênio Sales, então Arcebispo do Rio, fez um pedido durante a missa para que enquanto houvesse criança sendo morta pela violência, que a gente não parasse de lembrar esta data. Aquilo entrou no nosso coração como um grito mesmo, e não nos calamos desde então”. Hoje ela é coordenadora da Central Humana de Educação, Ideia e Formação Alternativa (CHEIFA) em Jardim Gramacho, uma das instituições parceiras do Fórum Grita Baixada.  Confira a conversa.

 

Entrevista a Fabio Leon  

 

A Chacina da Candelária completou 25 anos. Como esse episódio perverso, de uma certa forma, atravessa a sua vida profissional. 

 

Eu trabalhava em uma instituição de acolhimento de crianças e adolescentes em situação de rua em Campinho. Quando aconteceu o massacre, sentimos falta de um dos meninos, o Joilson da Silva. Era a noite do meu plantão, quando chegou a notícia de que estavam matando meninos de rua, sendo que ainda não se sabia exatamente onde. Como o Joilson demorou a aparecer, e a essa altura a Chacina já tinha virado notícia, fui atrás dele. Suspeitei que ele pudesse estar lá, pois ele adorava circular pelo Centro e pela Zona Sul. Naquela época, a Candelária era um local neutro, um ponto de encontro mais democrático, digamos assim, já que os meninos me contavam que várias regiões do Centro “pertenciam” a uma determinada facção. A Lapa tinha uma, a Central outra e por aí vai. Nós, enquanto Pastoral do Menor fizemos uma missa de sétimo dia na própria Igreja da Candelária, celebrada pelo cardeal da época, Dom Eugênio Sales. Ele chegou para nós e disse “que enquanto estiverem matando meninos em situação de rua, vocês devem continuar com a memória desse dia, para que ele nunca seja esquecido”.  

 

O que os meninos contavam pra você sobre as ameaças que sofriam?

 

Eles já falavam que poderia acontecer a qualquer momento. Como muitos eram da Baixada Fluminense, tínhamos conhecimento de uma chacina aqui, outra acolá. Pra onde eles fossem, existiria essa possibilidade (de serem mortos). Eles relataram que eram obrigados a fazer alguns roubos nas imediações porque os agentes de segurança queriam um arrego para não levá-los para as instituições de recolhimento. Um outro dado interessante é que na região da Candelária, pra garantir essa “neutralidade”, eles não praticavam roubo com armas, apenas furtos. Ali eles queriam atenção, mendigavam, queriam ser adotados, mas foram confundidos com ladrões comuns. Eram crianças e adolescentes já fugidas de outras instituições e lá se encontravam.  

 

Depois o que houve?

Saí e acabei me transferido para a Fundação São Martinho, depois para a Casa do Menor São Miguel Arcanjo, em Miguel Couto (Nova Iguaçu). Nessa cidade, no bairro Califórnia, trabalhei com as questões de cognição em função do uso de drogas entre crianças e adolescentes. Como trabalhava sempre pela Pastoral do Menor do Estado do Rio de Janeiro, como coordenadora e representante na CNBB, pegamos um projeto do governo federal para crianças e adolescentes com histórico de atos infracionais.  Era uma época em que estávamos lutando para que houvesse mais representações dos Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) e Coordenadorias Regionais de Educação (CRE´s) nos territórios para onde seriam encaminhados os adolescentes em situação infracional, dentre outras políticas públicas.

 

E como a CHEIFA entra na sua vida?  

 

Quando eu trabalhava em um dos projetos, foi verificado que o índice de reincidência dos menores era muito baixa. Mas eu precisava participar de mais atividades para a sobrevivência econômica da equipe que trabalhava comigo e da minha própria. Comecei a me inscrever em concursos de editais de financiamento para projetos sociais, até que surgiu uma proposta do governo da Bélgica que já conhecia o nosso trabalho. Foram encaminhados cerca de 80 projetos do Brasil e o nosso foi contemplado. O primeiro convênio foi de três anos, a partir de 2006, e foi aí que fui parar em Jardim Gramacho (sede da Cheifa). Eu já fazia um trabalho pela Pastoral do Menor em Jardim Gramacho acompanhando mães cujos filhos estavam tutelados pelo Departamento Geral de Ações Sócio- Educativas (Degase). Mas o problema é que não adianta fazer um trabalho com esse tipo de acompanhamento sem haver uma prevenção. Nessa época, também tinha saído uma pesquisa dizendo que Duque de Caxias tinha uma das maiores populações de crianças e adolescentes em situação de rua da Baixada Fluminense. Tanto que havia muitos jovens no Instituto Padre Severino (instituição de medidas socioeducativas vinculada ao Degase e localizada na Ilha do Governador, região metropolitana do Rio). Comecei a fazer palestras para as mães na região e descobri que havia mais de 80 crianças fora da escola. E quais as razões dessa situação? Muitas vinham de outros estados como os do Nordeste, não tinham documentação e os filhos ajudavam as mães na catação do lixão que fica aqui perto. As que iam para as escolas sofriam bullying por causa dessa ajuda que elas forneciam às mães e ficavam desestimuladas para assistir às aulas. Perguntei a essas mães se eu poderia ser um canal, conversar com a secretaria municipal para tentar encontrar uma solução. Depois aconteceram algumas irregularidades que me deixaram insatisfeitas. Fiquei sabendo, por exemplo, que elas estavam recebendo cestas básicas apenas mediante pagamento do que elas recebiam do Bolsa Família. Elas ganhavam uma miséria e ainda por cima eram exploradas. Foi assim que eu pensei que tinha que retomar o projeto. Hoje atendemos cerca de 40 crianças, além das famílias que também passam pelos nossos cursos de alfabetização. No curso de informática e música tem mais 70 crianças, através de uma parceria que fizemos com a Marinha.  

 

Queria retomar o assunto sobre políticas públicas para as crianças e adolescentes. Passados 25 anos da Chacina da Candelária qual a avaliação que você faz sobre essa legislação específica. Quais foram os avanços e retrocessos na sua opinião?      

 

O que eu percebo é que temos apenas políticas de governo e não políticas de Estado. Você pode fazer uma análise de conjuntura vendo quem estava à frente desses governos nos últimos anos e quem, de fato quis respeitar o que diz o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Com Darcy Ribeiro e Leonel Brizola nós conseguimos muitos avanços no que se refere a essa parcela da população. Tínhamos abrigos especiais para essas crianças, espaços destinados unicamente para as meninas. Existia até uma secretaria de governo específica para a implantação dessas políticas. Os outros governos não atenderam ao artigo 227 da Constituição Federal (saiba mais nos links abaixo). Eu, particularmente, posso dizer que a minha atuação e a dos companheiros envolvidos no sentido de se respeitar o que diz essa lei hoje se deve pela nossa participação nas emendas populares da CF de 1988. Nos municípios, há vários conselhos locais, mas a boa atuação deles depende muito do desempenho dos gestores públicos. Você tem um poder judiciário que não faz cumprir as exigências do ECA. Existe o SINASE que é uma política pública, mas não é respeitada também. Dentro da lei tem o chamado o Plano da Primeira Infância, em que todos os municípios deveriam ter um número mínimo de creches em funcionamento. Recentemente, participamos de uma audiência pública promovida pelo Conselho Estadual da Criança e do Adolescente (CEDCA-RJ) na ALERJ e propusemos que fosse criada uma lei que bloqueasse parte do repasse orçamentário federal se fosse verificada a insuficiência de investimentos em crianças e adolescentes.

 

Em muitos lugares, temos as presenças de policiais militares que adentram as escolas públicas do ensino fundamental e médio e promovem palestras sobre o consumo de drogas. Qual a sua opinião sobre isso?

 

Existem vários problemas aí. Primeiro, que eles se utilizam de uma linguagem que é só deles e as crianças pouco absorvem informações que deveriam ser úteis, exatamente para afastá-las das drogas, um típico linguajar de batalhão. Além disso, eles estão dentro de uma realidade que está muito distante dos adolescentes da periferia de hoje. Não possuem uma pedagogia apropriada para isso e a abordagem é sempre de terror e cheia de moralismo. É preciso que se trabalhe vários aspectos da Educação para que esse tipo de planejamento surta efeito. Eles desconhecem ou fornecem muita resistência sobre uma nova formatação familiar, que ainda está em construção, e pra piorar, eles não têm sensibilidade para fazer esse tipo de abordagem a crianças cujas famílias atravessam, de fato, problemas graves com o consumo de drogas, as tais famílias desestruturadas que eles tanto falam. Grande parte dos núcleos familiares de favelas e periferias são comandadas por mães e avós, muitas vezes por duas mães e não há a figura paterna. Há casos que os pais foram embora e as crianças são criadas pelos vizinhos. Ou seja, estamos falando de cidadãos que querem limpar as drogas das ruas e ao mesmo tempo são favoráveis à redução da maioridade penal, a pena de morte. Chega a ser esquizofrênico. E isso sem mencionar o fato de que hoje em dia os adolescentes são muito mais questionadores do que a geração anterior. Então eu me pergunto: há realmente interesse em se fazer uma abordagem qualificada, há um interesse em se resolver o problema? Não se está implementando políticas públicas de prevenção dessa maneira. Apenas se fala o que quer e vai embora.

 

Em uma das reuniões da Coordenação Ampliada do Fórum Grita Baixada você mencionou as condições estruturais das instituições de medidas socioeducativas para os menores em conflito com a lei. Você poderia dizer em que condições elas se apresentam?

 

Hoje a realidade das unidades de medidas socioeducativas é que elas atravessam um cenário de superlotação. Muitos dos internos cumprem medidas por atos infracionais leves e são oriundos do interior. Dentro do ECA, você tem o artigo 112 em que estão elencadas todas as abordagens que são necessárias. Primeiro vem a advertência, depois a prestação de serviço sócio-comunitário, depois a Liberdade Assistida (LA), a Liberdade Assistida Comunitária (LAC), o regime de semiliberdade e, por fim, a internação. O poder judiciário faz tudo o contrário. Ele não respeita o Estatuto e simplesmente prende pra depois liberar. Eu conheci um menino de Paraty que tinha roubado um biscoito. Eu perguntei a ele porque ele tinha feito aquilo e a resposta me surpreendeu.

 

O que ele disse?   

 

Que ele tinha 8 irmãos e eles não sabiam que o biscoito dessa marca tinha umas figurinhas de bichinhos. “A minha mãe ganha cesta básica, mas nunca vem biscoito.”, ele falou comigo. Levaram ele de volta ao mercado onde foi feito o delito, bateram nele e levaram perante o juiz que determinou que ele ficasse internado. Aí o que acontece depois? A mãe que tem 7 filhos pra criar sozinha, como vai visitar esse menino? Vai deixar esses filhos com quem? Ou seja, ele vai ficar abandonado, ninguém mais vai visitá-lo e ele fica cada vez mais envolvido com o ambiente criminal. Quando bastaria que a mãe tivesse condições de ir buscá-lo e ele tomasse a devida advertência, evitando o seu encarceramento.  

 

É verdade que nas instituições de medidas socioeducativas já existem coletivos organizados e pertencentes a determinadas facções?

 

Sim. E não apenas de facções. Mas existem menores milicianos também.

 

Milicianos?

 

De meninos e meninas. E no caso delas, há todo um tratamento diferenciado. Os quartos são melhores. São as princesas das milícias. Mas há muitas denúncias de tortura também. Já há uma lógica de presídio há muito tempo implantada nas unidades socioeducativas. Não à toa, os agentes socioeducativos reivindicaram o direito de andarem armados. Aliás até o nome mudou. Agora, em qualquer edital de seleção pública para esses espaços, eles são agentes de segurança.  E como as unidades, do que jeito que estão, não foram feitas para a ressocializar, os meninos retornam para as suas comunidades, iniciados no crime, e ganham poder lá fora para se tornarem os próximos líderes. Eles dormem no chão, um em cima do outro, lhes são negados até o direito de beber água. Inclusive no CEDCA nós queríamos que fossem criados mecanismos que impedissem a entrada de um número de jovens que agravasse uma situação que já está gravíssima, limitando um teto de 90 vagas por unidade. Mas os juízes não respeitam essa medida. Em uma cela em que cabem 4, dormem 12. Tem uma unidade que tem até tronco, desses usados para punir os escravos. Sabemos de tudo isso pelas mães. A sociedade não sabe disso.

 

E doenças?

 

Sarna tem demais, tuberculose, depressão. Muita depressão. Muitos meninos inventam complicações de saúde para ficarem dopados, pois não têm nada pra fazer. Dizem que estão sofrendo perseguição e os médicos receitam Gadernal para eles dormirem o dia inteiro.

 

E baseado nesse cenário dantesco que você descreveu, como o ECA sobrevive a isso tudo?

 

O ECA é um sistema de garantia de direitos. Ele é formado pelos Conselhos, Defensoria Pública, Ministério Público (MP), os governos. Isso tudo precisa ter um alinhamento. Quando você tem em um Estado como o Rio de Janeiro, um MP rachado o sistema já faliu. Uma parte visita as unidades de internação, exige o cumprimento do ECA, do SINASE e de todas as etapas processuais. A outra faz tudo de cabeça pra baixo. Começa pela prisão e se produz mais seres humanos irrecuperáveis

 

Saiba mais:

A Chacina da Candelária

Estatuto da Criança e do Adolescente

O que diz o artigo 227 da Constituição Federal

Página do Degase

Artigo sobre o SINASE