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23 de maio de 2019

Entrevista do mês: Rafael Rocha, presidente do SINDPERJ   

“SEM PERÍCIA NÃO HÁ JUSTIÇA”

O presidente do Sindicato dos Peritos Criminais do Estado do Rio de Janeiro (SINDPERJ) faz uma análise sobre as dificuldades que a categoria enfrenta para reduzir as taxas de homicídio na Baixada Fluminense. 

 

No último dia 26 de abril, a coalizão de instituições que integram o Fórum Grita Baixada (FGB) ocupou a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro para a realização da Audiência Chacinas e Desaparecimentos Forçados na Baixada FluminenseUma das reivindicações apresentadas pelo coletivo era que a Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense (DHBF) qualificasse seus índices de resolução nos casos de assassinato, de forma que se retirasse a aparente sensação de morosidade em seus processos de investigação, bem como a necessidade de investimentos e novas estratégias para o fortalecimento da capacidade investigativa, criando meios para a ampliação da elucidação dos homicídios. No momento da Audiência, as declarações feitas por uma representante do Sindicato dos Peritos Oficiais do Rio de Janeiro (SINDPERJ), relatando todo um universo de precariedades que paira sobre a categoria, chamaram a nossa atenção. Através de contatos, chegamos ao seu presidente, Rafael Rocha, o nosso entrevistado do mês.

 

Quando um crime de homicídio ocorre, ele precisa ser solucionado e sua motivação, esclarecida. É o trabalho do perito lançar luzes sobre o que tal prática criminosa insiste em esconder. Em sua rotina, deve planejar, ordenar e elaborar procedimentos, tanto dentro do laboratório quanto em locais externos, incluindo o local de ocorrência, de forma a coletar provas. Uma vez coletadas e analisadas, assim como os crimes em si, elas podem pertencer a naturezas distintas. Também faz parte do trabalho do perito criminal, examinar armas e munições. O objetivo é identificar, por exemplo, se os ferimentos à bala identificados no corpo da vítima são do mesmo calibre de alguma arma encontrada no local do crime, o que, em caso negativo, se configuraria fraude processual. Segundo informações do Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE), um dos mais conceituados do país, a profissão pode abranger mais de setenta tipos de exames periciais, dependendo da área de formação a ser requisitada e o que quer se provar em cada caso.

 

“Eu costumo dizer que sem perícia, não há justiça. Ela produz a materialidade da ação criminosa”, afirma Rocha, que é formado em engenharia ambiental com especialização em engenharia de segurança do trabalho. Ele diz que peritos forenses são como cientistas ou pesquisadores nos locais de crime. Comenta que a série de TV CSI (Criminal Scene Investigation ou Investigação da Cena de Crime, em tradução livre), como toda peça de entretenimento, é fantasiosa em suas narrativas, mas, em contrapartida, apresenta fatos verídicos, no que se refere aos métodos de investigação. “Eu gostaria de contar com aqueles laboratórios de análises que mostram na série. Se tivéssemos 10% da potencialidade de recursos materiais e humanos apresentados ali na resolução de cada caso, teríamos uma das Polícias Civis mais eficientes do mundo, porque essas pessoas amam o que fazem. O problema é a falta de investimentos que precarizam o nosso trabalho”.

 

Na opinião do especialista, a distribuição do número de postos de trabalho dos peritos na região central do Rio, bem como na zona sul carioca, é desigual em comparação com a disponibilidade dos mesmos na Baixada Fluminense. “A quantidade de peritos prevista para cobrir as áreas do centro e zona sul da capital é a mesma para cobrir os municípios de Nova Iguaçu, Queimados, Japeri, Mesquita e Belford Roxo, o que já representa certa desproporcionalidade. Ter apenas dois Postos Regionais de Polícia Técnico-Científica (PRPTC), contendo um perito criminal e um perito legista em cada (por jornada de 24 horas), ao atendimento de uma área cuja população atual é de mais de 1,7 milhões de pessoas, não é suficiente para atender dignamente esses habitantes.”, lamenta Rocha.

 

Recordista mundial no número de mortes violentas intencionais, com sete pessoas assassinadas por hora em 2016, o Brasil também está entre os países com menor taxa de elucidação de homicídios. Em artigo produzido recentemente pelo FGBanalisando os 100 dias do governo Witzel, são expostos dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) que demonstram que, na Baixada, morrem cerca de 56 pessoas para cada 100 mil habitantes. A região possui mais de 18 mil assassinatos ao longo dos últimos 10 anos, entre os homicídios cometidos por policiais em situação de confronto, mais conhecidos como autos de resistência, somente no ano passado, foram registrados 545 casos de assassinato na Baixada, um aumento de 58,8% em comparação a 2017 (343 casos). Se houvesse mais investimentos em tecnologia no trabalho da Polícia Técnico-Científica, talvez esses números pudessem ser reduzidos.

 

Entrevista a Fabio Leon

 

Como estão as condições de trabalho desse profissional no Rio e na Baixada?

Estão precaríssimas. É muito triste a gente observar que temos um universo multidisciplinar, formado por engenheiros de diversas especialidades, além de médicos, veterinários, biólogos, psicólogos, contadores, uma gama de profissionais, de experts aquém do potencial que podem oferecer. São pessoas que estão imersas em uma jornada acadêmica sem fim. É um investimento acadêmico, em nível superior, especializações, pós-graduação, mestrado e doutorado. Entretanto, não temos o básico para trabalhar e produzir um laudo pericial com a robustez que o Poder Judiciário necessita para que o magistrado possa respaldar as suas decisões. Assim como a estrutura dos laboratórios em si. Há desde falta de insumos básicos como solventes orgânicos, luvas, até questões referentes a salubridade do local de trabalho. Se houvesse uma inspeção séria em cada um desses laboratórios para resguardar a saúde desses profissionais, eles já teriam sido interditados. Um exemplo do descaso na Baixada, é o próprio Posto Regional de Polícia Técnico-Científica (PRPTC) de Nova Iguaçu, que foi instalado de forma improvisada em uma delegacia desativada, antiga 52ª DP. A perícia não pode compactuar com improvisos, haja vista que os experts necessitam trabalhar em laboratórios cujas especificações técnicas não são atendidas em um ambiente originariamente idealizado para compreender uma sala de delegacia.

 

Conte um caso grave que você presenciou.

O Instituto Médico Legal (IML), Afrânio Peixoto, embora fique no município do Rio, é uma amostra representativa do todo. Está sendo alvo de uma investigação do Ministério Público que determinou que seja instalada uma brigada de incêndio local com 24h de funcionamento. Esses bombeiros e suas viaturas deveriam estar na rua e não estar à disposição de um órgão que deveria estar administrando recursos próprios para o funcionamento dos seus postos regionais de polícia técnico-cientifica. Um incêndio ali e todo o material de pesquisa se perde completamente. Há também um sério problema de falta de luz. Deveríamos ter um gerador que atendesse às necessidades mais estratégicas, mas ele não funciona. Ou seja, acaba comprometendo a qualidade de análise de diversos tipos de amostras como tecidos, sangue, que deveriam ser preservados em estado de refrigeração. Uma vez perdidos, acaba com a possibilidade de gerar qualquer prova material. Sem o devido investimento, as taxas de investigação de homicídio continuarão estagnadas.   

 

Em 2015, foi instituído o projeto de lei Nº 594 que determina a criação de um sistema de identificação balística para elucidação de crimes no Estado do Rio de Janeiro. Ele seria um banco de dados para rastreamento de armas de fogo. Mas considerando a precarização que a categoria sofre e a flexibilização para o porte e a posse de armas decretada pelo governo Bolsonaro, qual o diagnóstico que o senhor faz em relação às taxas de homicídio do Estado?

Isso é preocupante, embora eu não vejo problema nessa decisão governamental sobre o porte de armas se...houvesse...bastante...fiscalização (enfatiza). Uma vez que você tem esse banco de dados, desde a concepção da arma, você teria como estipular o padrão de fabricação, ou seja uma impressão digital dessas armas. Na medida em que elas fossem adquiridas e identificado qualquer tipo de crime cometido, além de coletados os vestígios produzidos por elas, conseguiríamos chegar aos autores dos crimes.  Ou pelo menos no proprietário dessa arma e a partir daí teríamos uma linha de investigação. Porém, mais importante do que tudo isso é que equipamentos mais modernos sejam adquiridos para que esse monitoramento seja realizado com mais eficiência.

 

Vamos insistir um pouco mais sobre a questão da flexibilização do porte de armas. Embora o senhor não detecte problemas nessa política pública, sabemos que há mecanismos de fraude que podem contribuir para que aptidões psicotécnicas em manejar uma arma passem como sendo verídicas.

Essas irregularidades não podem passar. Teoricamente no melhor dos mundos, você deve proceder com todos os testes de maneira idônea e eficiente, de forma que a pessoa que tente burlar esses mecanismos não tenha condições para essa prática. Se essa realidade existe, os órgãos fiscalizadores deveriam avançar em suas pesquisas em busca de metodologias de trabalho que possam detectar pessoas que estejam burlando os processos para que elas não obtenham a aprovação da posse de arma.

 

Há também a questão envolvendo as munições que agora não precisam ser mais codificadas por lote. E isso sem considerar que 74% desse montante, segundo informações do jornal O Globo, são vendidas sem nenhum tipo de marcação. 

E pra piorar, essa codificação de lote não atinge todos os calibres. Para nós, peritos criminais, o número de lote é um subsídio ao perito, mas não definitivo. Na investigação ela não é determinante. Independentemente do número de lote, se o perito consegue coletar no local de crime, os projéteis e os estojos (compartimento onde a pólvora é armazenada, e é ejetada das armas quando o disparo é efetuado), você tem outros exames a serem realizados nos componentes de munição para se chegar nessa arma. 

 

Existe algum armamento ou munição que, por ter algum tipo de preferência pelo crime, pode ter seu itinerário mais facilmente detectado?

Isso é um estudo científico na medida em que dados são gerados no sistema balístico. Você pode gerar uma mancha criminal (mapeamento de áreas de ocorrência) de determinado calibre. Um revólver calibre 9mm, por exemplo, ele é extremamente empregado nos municípios A, B e C que sabidamente, pelo trabalho de inteligência, são áreas cujo comando paralelo é dirigido por milicianos. A partir daí você correlaciona ideias e informações. Da mesma forma que você pode correlacionar outros calibres, munições e armamentos em outras áreas dominadas, dessa vez pelo tráfico.    

 

Quando uma cena de crime não é preservada, corre-se o risco de perder os vestígios que comprovam a autoria de quem o praticou. Por exemplo, agentes militares de segurança do Estado, em determinadas situações, se utilizam dessa prática quando querem acobertar alguma ilegalidade cometida em operações para culpabilizar/criminalizar moradores de favelas e outras periferias. Como o senhor analisa isso?

Quando o local do crime não é preservado, ele não se torna necessariamente um caso de elucidação impossível, pois todo crime deixa marca. No entanto, isso atrapalha o trabalho da perícia. Eu apelo para as forças de segurança que se preserve o local de crime. Isso deveria ser divulgado amplamente em todo o lugar. Em escolas, cursos, em atividades culturais, porque isso é extremamente importante para as políticas de segurança pública. Se você percebe que o local do crime foi descaracterizado, pode comprometer toda a linha de investigação.

 

Mas vocês conseguem perceber isso com facilidade? 

Através de algumas técnicas, sim. Por exemplo, tem uma área de perícia que se chama AMS (Análise de Mancha de Sangue). Se a mancha de sangue está impregnada em uma superfície dentro de uma morfologia, posição ou perímetro ou, ainda, se as manchas de sangue de um cadáver estão em posição divergente daquelas que se materializaram anteriormente, você pode começar a suspeitar que houve alguma manipulação. Se as vestes do cadáver não estão posicionadas em um sentido natural, se roupas foram adicionadas ao corpo posteriormente à hora da morte, se os projéteis e estojos encontrados no local do crime não correspondem aos danos e as lesões identificadas no corpo. É um verdadeiro quebra-cabeças que você vai começar a montar. Mas com todas as possibilidades verificadas, o perito consegue identificar a fraude processual em andamento. Entretanto, em outras ocasiões, ele não consegue firmar essa convicção. O que ele não conseguir no local, ele consegue no laboratório. Por exemplo, quando alguém quer incriminar um indivíduo por disparo de arma, colocando a arma na mão da pessoa, há exames residuográficos que podem encontrar resquícios de pólvora nas mãos, nas narinas e até nas vestes das roupas de quem efetuou o disparo. Aí você vai ter de pesquisar uma série de variáveis como a trajetória dos depósitos desses resíduos. Às vezes, a prova está muito em evidência, outras vezes não.    

 

Quais os riscos em se identificar a alteração de cenário de um crime nessas circunstâncias?

Nossa atividade é naturalmente perigosa, afinal estamos produzindo a materialidade de um crime. Não importa a cena. Você precisa ser imparcial e se ausentar de qualquer lado. Do agressor e da vítima. Embora os policiais teoricamente estejam fazendo o trabalho de acautelamento do local, nós precisamos trabalhar.

 

Na Baixada há muitos casos de desaparecimentos forçados, mas naturalmente, e mesmo sem evidência, é preciso seguir uma linha de investigação. Como vocês procedem nesses casos?

A perícia fica um pouco fora dessa questão até que ela seja requisitada. Houve o registro de ocorrência do desaparecimento. A partir daí a equipe de investigação presidida pela autoridade policial faz uma entrevista com a(s) testemunha(s) que levam até o local onde a pessoa esteve pela última vez. A polícia civil tem outros procedimentos, mas se houver a necessidade de se analisar um objeto encontrado no local que crie novas possibilidades de narrativa para esse desaparecimento, é aí que nós entramos.    

 

A unificação das polícias também tem sido bastante discutida enquanto solução para se qualificar os resultados da segurança pública no Estado. O senhor concorda?

Como profissional da segurança pública não tenho uma opinião formada sobre o assunto. Como cidadão eu digo o seguinte: não vejo problema nenhum quando você unifica instituições que já exercem o papel de autoridades policiais, um em caráter mais ostensivo e outro em caráter mais investigativo. Facilitaria em muito a gestão, embora eu não seja um especialista em segurança pública.

 

Como você avalia a questão da desmilitarização da segurança pública?

Vejo da mesma maneira. Já fui militar, alcei o posto de segundo sargento do Exército durante os 13 anos que lá fiquei. Ou seja, embora eu seja das forças armadas, não conheço a realidade da Polícia Militar. 

 

Há uma discussão em andamento desde 2015 para que os peritos criminais no Rio de Janeiro não sejam mais subordinados à Policia Civil, o que já acontece em 18 estados brasileiros. É importante manter essa separação?

Já foi até encaminhada uma emenda à Constituição do Estado, em 2005, para que a perícia fosse subordinada a um outro órgão da pasta de segurança pública, mas essa iniciativa foi vetada, pois deveria partir de uma proposta do próprio governador e não de uma instância subordinada. Nesse cenário de extrema violência que é o Rio de Janeiro, a perícia deixar de ser uma unidade vinculada a segurança pública eu acho temerário. No entanto, eu acredito que sua autonomia administrativa é necessária, pois hoje a polícia é uma verdadeira gestão de prioridades.

 

Como assim?

Isso significa apagar incêndios. Ela não consegue se estruturar por falta de recursos. Se é culpa das gestões anteriores, eu nem vou entrar nesse mérito. A questão que fica é: o que agora se torna prioridade para investir os recursos? Eu te digo o seguinte. A perícia não é prioridade. Vários órgãos saíram da Polícia. É por isso que apostamos em outros modelos de autonomia dentro da instituição. Daqui a pouco vai entrar na ALERJ (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro) projeto de lei orgânica da Polícia Civil que determina que o departamento da Polícia Técnico-Científica seja dirigido por um delegado. Nada contra, pois são pessoas inteligentíssimas que passaram num concurso público difícil. Mas o ideal é que o departamento fosse dirigido por um perito oficial. Como há muita rotatividade entre os delegados que assumem a Polícia Técnico-Científica, muitos chegam sem saber o que fazer. Mas isso é natural porque eles são especialistas do Direito. Para ele se ambientar no cenário, isso leva tempo e, quando começa, entra um outro que começa tudo do zero de novo. A Polícia Técnica não pode mais ficar dentro de um departamento. E na Polícia Civil há diversos departamentos. Esse projeto de lei pode fazer com que o Departamento de Polícia Técnico-Científica tenha status de subsecretaria, como já existem as subsecretarias Operacional e Administrativa.

 

O fato do Sindicato dos Peritos Criminais ter sido criado apenas em 2016 diz exatamente o quê sobre como esse profissional da investigação é visto perante a Polícia Civil?

Foi o amadurecimento de uma demanda histórica da categoria. Apesar de integrarmos a Polícia Civil, ela sempre esteve apagando incêndios. A Polícia Técnico-Científica nunca se viu contemplada. Vai haver um concurso para legistas, mas apenas 20 vagas serão contempladas. É muito pouco e não atende sequer a demanda nem da sede do IML, que dirá do Estado do Rio. E não estamos falando apenas do número de vagas, mas de valorização da profissão, de promoções de peritos oficiais, e dos próprios policiais em relação aos delegados, que estão em dia. Os elogios das investigações são todos voltados aos policiais e aos delegados. Não recebemos quase nada! Esse fomento à perícia precisa ser estimulado. A construção desse sindicato é dar uma segunda chance à História.