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3 de julho de 2018

Entrevista do mês: Sueli Catarina e José Sérgio

Os desafios em se manter um projeto social

Conversamos com dois representantes da organização Visão Mundial, uma das instituições parceiras do Fórum Grita Baixada, sobre os percalços que encontram em conduzir iniciativas dessa natureza

 

 

Quem se aventura a militar em projetos sociais, pode ter a certeza de uma coisa. Os desafios se somam de maneira constante. Principalmente se o público-alvo a ser atendido é uma minoria social, desprivilegiada de uma série de direitos que deveriam ser garantidos por lei. Essa é uma das características de instituições como a Visão Mundial, entidade parceira do Fórum Grita Baixada, cuja unidade funciona em Jardim Palmares, bairro periférico de Nova Iguaçu. Conversamos com dois de seus representantes, Sueli Catarina e José Sérgio.

 

Sueli é ativista desde a juventude. Começou o trabalho em um movimento ligado à juventude da Igreja Metodista no bairro da Chatuba, em Nilópolis, articulando com a associação de moradores um projeto social apoiado pela Visão Mundial. Entrou como educadora em 1986. No ano seguinte, passou a integrar os quadros da organização. Faz o que se chama de trabalho de operações ou trabalho de campo. Trabalhou em funções de coordenação pelo país afora sempre apoiando e assessorando projetos. Participou do movimento feminista Rabo de Saia durante mais de 10 anos, realizando discussões sobre o enpoderamento da mulher, mas de forma a atingir as classes populares. “Naquela época as discussões sobre feminismo ainda eram muito elitizadas. Falávamos sobre a condição da mulher em sociedade, os direitos, como a igualdade de gênero deveria chegar nas periferias”, explica.

 

José, ou Zé para os amigos, conheceu a Visão Mundial em 2002, no Complexo do Lins, no Méier. Fazia parte de um movimento ligado à Igreja Católica, e dentro desse espaço, também havia um projeto da Visão Mundial, chamado Amigos Para Sempre. Começou como voluntário nas atividades e depois entrou na equipe local do programa, desenvolvendo ações com as famílias e visitando crianças. Conheceu o projeto MJPOP que visa estimular o monitoramento de políticas públicas pelos jovens em comunidades pobres. Integrou a equipe da Visão Mundial, em 2009, para expandir a metodologia de monitoramento e ajudar a sistematizá-la. Em 2016, se envolveu com a parte administrativa e de finanças da organização e, em novembro do ano passado, passou a fazer parte da coordenação de um outro projeto da entidade, chamado Eu Sinto na Pele. Eis a entrevista:

 

Entrevista a Fabio Leon

 

 

O MJPOP traz uma curiosidade interessante, pois parece que junta elementos um tanto antagônicos. A juventude que, dizem, ser alienada, desinteressada por temas como Políticas Públicas e esse trabalho de monitoramento feito justamente por jovens. Como vocês conseguiram casar esses dois eixos e quais as avaliações que fazem até agora?

  

Sueli Catarina-  Essa metodologia incialmente era para adultos. Foi desenvolvida na Visão Mundial da Austrália, e sofreu algumas adaptações quando veio ao Brasil.

 

José Sérgio – Lá eram sete as fases que se destacam para organizar mobilizações comunitárias. Fomos descartando algumas e hoje ela se concentra somente em três fases: 1) Preparação e mobilização de onde se forma os grupos de trabalhos, identifica-se as comunidades de onde sairão esses jovens ou onde eles querem trabalhar. 2) Depois eles vão a campo para desenvolver pesquisas e identificar os serviços existentes no território (postos de saúde, escolas municipais ou estaduaias, dentre outros aparelhos públicos), retornam para as salas, discutem a situação desses aparelhos e escolhem as comunidades onde querem trabalhar. Então, tentam localizar possíveis parceiros na comunidade ou nas regiões próximas, do poder público do munícipio ou Estado, que podem colaborar com o projeto. Feito isso, eles elaboram um diagnóstico com todas essas informações levantadas, fazem uma escuta comunitária para detectar as necessidades locais e depois eles consultam a Constituição Federal e outros dispositivos constitucionais como a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), Lei Orçamentária Anual (LOA), Plano Plurianual (PPA), comparam com o levantamento em seus diagnósticos e criam um quadro de informações sobre o que diz essa legislação. A terceira fase, é convidar as comunidades, os parceiros e poder público, através de uma reunião comunitária, e monta-se um plano de ação através de incidência política.

 

Sueli – Existem alguns mitos de que o jovem seja alienado. De que ele não quer se comprometer com sua própria comunidade. Existem muitas dificuldades, sim. Há poucos espaços de formação para que a juventude se desenvolva. Mas quando ela tem a oportunidade de ser mobilizada e compreende que faz parte da construção desse projeto, responde de forma muito bacana. Afinal, é um movimento que começa como um projeto piloto em um complexo de comunidades de favelas, se espalha pelo Brasil e em outros países da América Latina. Isso sem considerar que a maioria das pessoas faz esse trabalho de maneira voluntária. Eles são preparados para terem a consciência do quanto eles podem fazer a diferença dentro dos territórios. Alguns permanecem atuando com a gente, se tornam lideranças em suas comunidades, alguns aprendem o que fizemos, mas não ficam. Porém isso faz parte da dinâmica social.

 

E esse projeto, o Eu Sinto na Pele? Que fala sobre violência de Estado sofrida pela juventude negra e pobre?

 

Sueli – Essa questão dos homicídios da juventude negra e pobre sempre foi uma questão que deixou a Visão Mundial muito incomodada. Essa reivindicação de se discutir essas questões nasceu por intermédio e pressão da própria juventude. Era impossível trabalhar nas comunidades e nas periferias em que esses jovens sofrem vários processos de vulnerabilidade, de violências, torturas, inclusive. Ou seja, era uma situação para a qual a organização não podia virar as costas. E ela assume esse compromisso de forma engajada. Ela vai se juntar a outras redes, movimentos e outros espaços em que há essas discussões.  E, pensando dessa forma, nós achamos que a parceria que estabelecemos com o Fórum Grita Baixada primordial nesse sentido. Qualquer parceria que estabelecemos, fazemos questão de aprender sempre mais. A questão do racismo passa a ser uma questão muito importante, pois ele está intrinsecamente ligado a todo esse contexto. Foi um movimento que foi tomando conta da organização, pois embora trabalhemos com crianças e adolescentes, são eles que estão morrendo também e em número muito maior.

 

Vocês têm conhecimento de vítimas da violência que tenham trabalhado nos projetos desenvolvidos na Visão Mundial?

 

Sueli – Vários.

 

José – Considerando que começamos a trabalhar com a juventude desde 2014. Teve um jovem de uma favela de Salvador que tinha saído da igreja e foi vítima de bala perdida por causa de uma guerra facções que estava ocorrendo lá e acabou sendo assassinado. A partir daí entramos nessa militância. Outro caso, foi de um outro jovem no Complexo do Lins, que foi preso injustamente ao confundiram ele com um alguém do tráfico. Tivemos recentemente também um caso de homofobia com alguém que trabalha com a gente que foi agredido, espancado e assaltado em Fortaleza.

 

Sueli – Agora em Salvador está acontecendo uma guerra de facções em uma das áreas onde trabalhamos. E lá tem uma dinâmica muito parecida com as favelas cariocas de não poder andar de um território para outro, senão é morto ou espancado. Você não faz parte desse ou daquele grupo, simplesmente se você morar em algum lugar já é uma condenação.

 

Quais são as dificuldades que vocês, enquanto organização, encontram na implementação de seus projetos nas comunidades, considerando que estamos atravessando um período político marcado pelo avanço do extremismo conservador, inclusive aqui na Baixada Fluminense e que, dentre outras características, relativiza de forma negativa projetos sociais que historicamente atendem às minorias?

 

Sueli – Isso trouxe uma grande desmobilização em vários movimentos, já frágeis em sua natureza. Nós trabalhamos com vários parceiros estratégicos, inclusive com a Igreja, tanto a Católica quanto a Evangélica. E nas duas há uma clara divisão entre o pensamento progressista e o conservador. Os movimentos sociais são sempre pressionados a se adaptar a mudanças que ocorrem na política, ainda mais considerando esse golpe que a gente teve do governo, o retrocesso causado em relação a perda de garantias fundamentais e próprio aumento do conservadorismo que você mencionou. Mas temos que continuar discutindo diversas questões, principalmente nos espaços onde determinados problemas não são debatidos por esse ou aquele motivo. Nós trabalhamos com pessoas que são engajadas, mas dentro desse engajamento existem pessoas muito conservadoras. Reafirmando, inclusive, o que a grande mídia fala. Em um espaço acolhedor, é possível você tentar desconstruir alguns discursos. Fazemos isso de forma intencional para que haja diálogo nesses espaços, pois não adianta você falar apenas para os aliados.

 

Mas por que existem pessoas que participam de projetos sociais mesmo com esse discurso?

   

Sueli – Como em todos os movimentos sociais, as pessoas que participam deles vêm de caminhadas e trajetórias de vida diferentes. Há pessoas que tiveram a oportunidade de refletir mais, de terem mais experiências em determinadas discussões. Outras, não. Então temos pessoas muito sinceras, que querem grandes mudanças, que querem se engajar, mas ainda não deram um passo em direção à uma visão mais crítica e acabam reproduzindo o discurso do espaço de onde vem. É um processo de crescimento que precisa ser respeitado, pois é uma diversidade trabalhosa, mas também muito rica. Você só consegue ter um projeto social forte se conseguir alinhar todos os pensamentos para um mesmo objetivo. Os diferentes também têm o seu lugar. A Visão Mundial acaba sofrendo de uma dupla interpretação contextual.

 

Como assim?

 

Sueli - Acabamos sendo muito progressistas para os conservadores e muito conservadores para os progressistas. Transitamos muito bem nesses dois mundos. Tanto um lado como o outro precisam dialogar. A transformação da sociedade como esperamos não vai ser feita de um lado apenas ou por apenas um grupo, E, sim, pelo seu conjunto. Já tivemos pessoas no nosso grupo que defendiam a redução da maioridade penal!

 

Haja pedagogia pra isso, não?

 

(risos) Sueli – Aí nesses casos a gente fala assim: “companheiro, desculpas, mas você está no lugar errado”. Porque precisamos deixar bem claro quais são as nossas lutas. Mas temos de levar em conta que são discursos mal elaborados, embora preocupantes. Mas dizer pra nós que “bandido bom é bandido morto” já é um pouco demais. É preciso ter coerência e ética pra pertencer a espaços como projetos sociais.

 

José – Na nossa rede de amigos nas comunidades que não trabalham em movimentos sociais, eles não sabem sequer o que são Direitos Humanos. Falam que é pra proteger marginal, defender vagabundo. Usam o discurso do “bandido bom é bandido morto”. Mas quando alguém das nossas redes é preso de forma injusta, então fazemos algumas provocações. “Ué, mas não foi você que disse que bandido é bandido morto? Agora você quer ajudar?”

 

Sueli – Antes conseguíamos fazer um movimento de juventudes bem grande, mas infelizmente, para solidificar a continuidade de alguns trabalhos, temos que competir com muita coisa. O jovem de periferia precisa trabalhar, antes de tudo. A família cobra isso dele. Não importa o grau de envolvimento e participação desse jovem em algum projeto, essa cobrança vai chegar mais cedo ou mais tarde. E são trabalhos que o absorvem fisicamente. E ainda tem que sair do trabalho pra chegar na faculdade e tentar estudar. O processo de formação de base além de ser muito fortalecido, precisa ser criativo. A violência também ajuda a afastar das reuniões. Não se pode fazer reuniões comunitárias em determinados horários. Os jovens que são atendidos pela organização são os que mais visados, são os que sofrem as abordagens, as surras. São várias situações que impedem que o movimento avance do jeito que gostaríamos.

 

Vocês atuam em uma região considerada violenta em Nova Iguaçu. Como esse cotidiano os afeta?

 

Sueli – Têm áreas que não podemos entrar, obviamente, por estarem em guerra. Nosso trabalho é junto às famílias, de acompanhamento às crianças, onde elas estudam. Os moradores acabam nos informando o que está acontecendo. Tem tido muito conflito com a polícia que impede, inclusive, a realização de atividades ao ar livre. Não importa o local. Até mesmo em lugares fechados, eventos infantis, temos que nos proteger quando acontece algum confronto. Mas, graças a Deus, nunca aconteceu nenhuma fatalidade com alguém da equipe. Já fomos assaltados aqui uma vez, roubaram os nossos pertences, mas, tirando o susto, nada demais aconteceu. Eu acho que trabalhar com autonomia é o que garante a nossa segurança. Nossas parcerias aqui da região são sempre com organizações que respeitam o nosso trabalho. Geralmente, igrejas e outros projetos sociais. Não somos ameaça para ninguém, não estamos vinculados a nenhum político ou partido político. Isso nos dá legitimidade. As meninas atendidas pelo projeto sempre andam com um uniforme que as identifica diretamente a organização, que também acaba sendo uma forma de proteção.

 

O que vocês costumam dizer em relação a determinadas críticas sobre projetos sociais, que eles são insuficientes para se resolver os complexos problemas sociais do país, por exemplo?

 

Sueli – Essa é uma situação que não se muda da noite pro dia, não se muda na base da rapidez. Porque não existe uma receita pronta. Na verdade, essa é uma visão muito acrítica da própria história do país. É um processo lento, mas ele pode ser duradouro e sustentável, se tivermos cada vez mais organizações e movimentos atuando com essas temáticas. O governo e o poder público precisam fazer a sua parte também para que todo esse trabalho se torne universal. Mas é um processo que precisa ser construído. Não existe salvador da pátria ou ação messiânica que vai resolver isso de uma outra para outra. Além disso, temos forças contrárias ao que estamos fazendo, trabalhando sistematicamente para nos derrubar. Então não há ambiente favorável a ações de forma unilateral. Não há uma relação de igualdade no sistema de opressão. Pra piorar, as organizações têm uma debilidade que precisa ser revista, que é a comprovação do seu impacto. A Visão Mundial investe muito em indicadores, mecanismos técnicos de avaliação, e em dar ampla visibilidade e transparência ao que fazemos nos territórios. Realizamos pesquisas, análises, diagnósticos. Isso é o que está faltando a alguns movimentos sociais. O Brasil seria um país muito pior se não fosse o empenho das organizações, dos movimentos sociais, do trabalho das igrejas, das redes. Nós temos é que mostrar, através de dados, que causamos impactos reais e afirmativos na vida das pessoas. A Universidade precisa dar suporte aos projetos sociais, chegar junto conosco.