03 de agosto de 2020

ARTIGO

Reflexões de uma historiadora preta sobre o Rei do candomblé Joãozinho da Goméia

 

Por Andreia Nascimento, historiadora e mestranda pela Universidade Federal Fluminense

 

 

Estou cursando o Mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense onde busco compreender como o pai de santo Joãozinho da Goméia se transformou em Rei do Candomblé. Para responder a esta questão trabalho com analise das representações e das imagens produzidas sobre o pai de santo na imprensa de 1936 a 1952. Trabalho majoritariamente com material da imprensa carioca que divulgava as festas no terreiro, e as atuações de Joãozinho como artista, coreografo e liderança do candomblé. Mas até chegar ao Mestrado foi um longo caminho de pesquisa nos arquivos públicos da Fundação Biblioteca Nacional, do Centro Nacional de Folclore e Cultura popular e também recorrendo às entrevistas com lideranças do candomblé como o Olwô Agenor Miranda Rocha, a Ialorixá Omindarewa (filha de santo de Joãozinho) e com Mametu Ileci da Oxum e Sinah Vuru- representantes da família de santo da Goméia.

 

Os  depoimentos da Ialorixá Omindarewa afirmaram  que  grande parte das lideranças afro-religiosas que ocuparam a Baixada Fluminense dos anos de 1950, em diante  foram atraídas pelo brilho e pela fama de Pai João, que desde Salvador fora reconhecido como uma potente liderança negra do combate à liberdade de culto e da proteção dos direitos dos adeptos do candomblé. Ela lembrava que Pai João tinha uma personalidade acolhedora, e que era autêntico, não abaixando a cabeça para injustiças. Também lembrava que o dom dele residia na seara da comunicação e da negociação: “Não havia autoridade política ou policial que não respeitasse a importância de Joãozinho da Goméia... tanto que em seu terreiro eles frequentavam, levavam os familiares e saíam felizes”. Pai João construiu um imaginário social sobre a sua presença em Duque de Caxias, que naquela altura se transformava em uma espécie de Pasárgada, onde se era amigo do Rei- quem não queria ser amigo de Joãozinho da Goméia? O nome virou referencia pra tudo, até como uma espécie de símbolo de sorte e de proteção para artistas, dançarinas, vedetes e políticos.

 

O pai de santo frequentava bailes de carnaval, banquetes no Itamaraty como dançarino, desfiles de escolas de samba, inauguração de Federação Espírita, de Centros de Referencia de estudo folclórico, de programas de rádio. Não foi contratado como coreografo do Cassino da Urca como versa a Literatura já consolidada sobre o pai de santo, mas foi coreógrafo em 1948 do grupo de folclore “Bravum” que se apresentou por duas temporadas no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, assim como foi contratado do Teatro Cassino Atlântico, do Hotel Quitandinha e era convidado para tardes de chá e noites de jantares no Copacabana Palace Hotel.

 

Uma amizade valiosa foi com Abdias do Nascimento, importante parceiro de Joãozinho da Goméia contra o Racismo e a intolerância religiosa. Inclusive, Abdias reconheceu por várias vezes a importância de Pai João nesta luta, reverenciando-o como o Rei Negro da Baixada, nomeando a Goméia como o Quilombo por reconhecer nela o papel de acolhimento aos negros que sofriam injustiça e que precisavam de auxílio religioso e financeiro como a compra de remédios e de comida. Muitas vezes a Goméia era refúgio para filhos de santo desempregados e adoentados. Analisando toda a trajetória de Pai João (1930-1971) podemos entender o porque da prefeitura de Duque de Caxias ter impossibilitado até então o retorno da Goméia como local de memória institucionalizada na forma de Centro Cultural Joãozinho da Goméia.

 

As memórias deste líder negro do candomblé sempre estiveram fortemente enraizadas naquelas terras, sendo  naquele chão cheio de força e de Axé, que um dia foi tomado pelo brilho de um pai de santo baiano que serão acolhidas outras lutas a partir da construção em Duque de Caxias do “Centro Cultural Joãozinho da Goméia”, que já é uma realidade para pensarmos na preservação da memória desta necessária liderança do candomblé Angola, neste momento tão emblemático no que tange a perseguição contra afro-religiosos na Baixada Fluminense.

 

A importância de um Centro cultural desta dimensão nesta região valida a importância de preservar a memória dos povos de terreiros, e de deixar para as gerações futuras um espaço de reflexão e de socialização, onde redes de afeto e de construção de autoestima se conectam para fortalecer a luta do povo preto contra o racismo estrutural, e demarcar o lugar dos afro-religiosos  na sociedade  brasileira; o que só valoriza a força para lutar contra agentes do Estado que pretendem através de “políticas comunitárias” incitar o ódio às religiões de matrizes africanas.

 

Que com a conquista de 27 de julho de 2020, onde a prefeitura de Duque de Caxias entendeu a importância de preservar o terreno de Joãozinho da Goméia, o povo do Axé como um todo, possa entender que a força está na união em prol de um ideal maior, para conquistar espaços de afirmação destas identidades negras, retomando seus espaços e lutando contra o retrocesso. Que a Goméia renasça deste solo, e que seus descendentes se irmanem novamente, como um modo de entender que para a Goméia ter sentido é fundamental que o espírito de articulação de Joãozinho da Goméia seja um caminho seguro a ser seguido, e que as palavras deste dirigente no leito de morte ganhe vida, agora mais que nunca: Não deixem a Goméia morrer!!!!