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25 de outubro de 2019

Fórum Grita Baixada + Rio On Watch

Diáspora no Divã: Coletivo Negro de Psicologia da Baixada Luta

Contra Subjetividades do Racismo

 

Quando abordamos os processos de invisibilização da população negra no país, alguns aspectos se tornam mais evidentes a partir do momento que encaramos o racismo como protagonista nesses processos históricos. Na psicologia não poderia ser diferente. Assim como alguns ofícios nascidos de uma sociedade exclusivista, trata-se de uma carreira que apresenta um grande déficit de profissionais negros.

 

Tal falta de pluralidade étnica fez com que o abismo de acesso ao atendimento psicológico se acentuasse. É um serviço pelo qual apenas uma casta economicamente privilegiada pode pagar—ainda que existam atendimentos a preços populares ou gratuitos em universidades. Apesar disso, há movimentos de resistência que buscam centralizar o racismo de forma mais efetiva nas discussões acerca da psicologia, desde o acesso mais igualitário das camadas mais pobres da população, até a formalização de políticas públicas de reparação psíquica às comunidades periféricas. O Coletivo Negro Conceição Chagas de Psicologia da Baixada Fluminense é um dos que perfazem esse caminho de lutas.

 

O nome é uma homenagem a Conceição Corrêa das Chagas. Nascida em 1935 em Nilópolis, Conceição é formada em pedagogia e em psicologia, além de doutora em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela UFRJ. Em Nova Iguaçu, durante as décadas de 1970 e 1980, ela iniciou um trabalho inovador, intitulado “Ponto de Escuta”, cujo objetivo era prestar solidariedade a pessoas com problemas emocionais decorrentes de sequelas da ditadura militar que governou o país por 21 anos. Em 1983, a metodologia desse serviço evoluiu para o hoje denominado Centro de Atendimento Familiar (CAF), que visa à prevenção da ocorrência de situações de risco social e pessoal, além de fortalecer os vínculos familiares e comunitários.

 

O Coletivo Negro Conceição Chagas de Psicologia da Baixada Fluminense atua em Nova Iguaçu, desde abril de 2018. Jacqueline dos Santos e Geílson Simões são dois de seus representantes, de um total de sete profissionais de diversos locais da Baixada Fluminense como Duque de Caxias, Belford Roxo e Nova Iguaçu. Jacqueline integra a Comissão de Direitos Humanos e Relações Raciais do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro. Os dois afirmam que somente quando o coletivo ganhou mais força e reconhecimento entre os profissionais da área é que expressões como genocídio começaram a ganhar naturalidade nos diálogos e articulações entre os colegas da profissão.

 

“É uma questão que precisa ser revista desde a universidade. Não há um ensino específico da psicologia que aborde de forma mais explícita as implicações do racismo sobre os indivíduos negros e negras. Não há uma política pública de atendimento somente para os casos de patologias psíquicas advindas única e exclusivamente do racismo. Há muito que se fazer sobre isso e é extremamente grave, ainda mais considerando o momento político atual, em que há poucas iniciativas sobre isso”, explica Jacqueline.

 

Tanto ela quanto Geílson, antes de se tornarem militantes da psicologia, sentiram na pele todos os percalços que envolvem ser negro e lutar pelo enfraquecimento de uma cultura de exclusão. Ela foi cotista da PUC-Rio por meio do programa ProUni, obtendo 100% de bolsa pela prova do ENEM. Mesmo assim, demonstrando extrema qualificação para se graduar na área, foi importunada de várias formas pela elite branca da universidade.

 

“Você, enquanto negra e periférica, precisa provar a todo instante que você é infinitamente mais qualificada para tarefas simples, inclusive, do que a maioria. Você não pode ser mediana em nada. Com isso, os alunos e alunas adoecem por causa da pressão, que é o dobro. Isso sem falar das retaliações sutis. Você passa a ter a exata noção do quanto incomoda. E se você se destacar, vão sempre desconfiar da sua performance, se você não ‘colou e copiou’ de algum texto consagrado”, relata Jacqueline.

 

Geílson conta uma história parecida. Ele adentrou uma faculdade privada através do FIES, programa do Ministério da Educação destinado ao investimento na educação superior de estudantes matriculados em cursos superiores não gratuitos. Ele foi convidado a apresentar o seu trabalho de conclusão de curso (TCC), intitulado Se a Homossexualidade é Ainda Sinônimo de HIV e AIDS, em um evento sobre saúde mental. Muito elogiado pelos especialistas, o documento circulou pelos meios acadêmicos e outros eventos correlatos. Mas a cor de sua pele não foi o suficiente para que obtivesse o devido reconhecimento nesses espaços. Ele explica o porquê.

 

“Em situações como essa, jamais te enxergarão como o palestrante. Sempre serei ligado à administração, a uma atividade subalterna, mesmo utilizando roupas mais “sociais”, usando óculos de grau, que não deixam de ser uma proteção para que eu não morra por suspeição criminal de alguma espécie, em uma blitz, por exemplo. Já cheguei mais cedo em algumas palestras e fiquei sentado num canto do auditório sem que ninguém se perguntasse quem seria aquela pessoa. Quando estava quase no horário da minha apresentação, indagaram onde estaria o palestrante e quando dizia que era eu, a expressão de surpresa era constrangedora”, diz Geílson.

 

Ele também esclarece que uma das ramificações mais cruéis do racismo parte, muitas vezes, da própria percepção de famílias periféricas em relação à cor da pele e o quanto ela pode significar uma série de barreiras. Para que essa condição se altere—segundo suas expectativas de mudanças sociais, econômicas e até estéticas—Geílson afirma que não é raro muitas dessas famílias apelarem para uma espécie de “embranquecimento estratégico”.

 

“Isso se dá naquele momento em que famílias pretas passam a influenciar as escolhas afetivas de seus filhos e netos para que os parceiros sejam brancos ou com o tom de pele negra mais clara. Para que não sejam tão discriminados na hora, por exemplo, de conseguir um emprego. Apagar as suas origens pode ser uma forma de garantir um futuro melhor. Isso é muito triste”, explica ele.

 

Mas nem tudo são opressões. Vitórias significativas também fazem parte da trajetória. Movimentos negros de todo o país conseguiram, depois de muita pressão, elaborar o documento “Relações Raciais: Referências Técnicas Para a Atuação de Psicólogas[os]”, publicado em setembro de 2017 pelo Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP), vinculado ao Conselho Federal de Psicologia. Ele é mais do que um manual. Nele, estão contextualizadas informações históricas, como a origem dos principais movimentos negros e a importância de suas influências para mudanças na psicologia do país. Há também algumas metodologias de como se enfrentar o racismo estrutural, contribuições teóricas da psicologia nas relações raciais e como o psicólogo pode contribuir na desconstrução do racismo e na promoção da igualdade racial.

 

É claro que o caminho ainda é longo. Segundo dados do Conselho Federal de Psicologia, o país tem registrados até agora exatos 352.386 psicólogos. Só no estado do Rio seriam mais de 42.000 profissionais cadastrados. Desse montante, 36.379 seriam de mulheres e 5.532 homens. Entretanto o próprio CFP não disponibiliza em seu site informações sobre o número de psicólogos/as negros/as na entidade. No Brasil a graduação de psicologia foi regulamentada em 1962, enquanto o 1° Encontro Nacional de Psicólogos Negros e Pesquisadores sobre Relações Inter-raciais e Subjetividade aconteceu somente em outubro de 2010.

 

Uma reportagem do site de notícias Nexo, datada de janeiro desse ano, abordando a questão dos impactos do racismo na saúde mental da população brasileira, revela que foi no censo demográfico de 1980 que fez-se, pela primeira vez, a pergunta sobre qual seria a cor dos entrevistados. O IBGE coletou uma impressionante marca com mais de 150 tipos de cores para não-brancos. Segundo o autor da matéria, essa multiplicidade de categorias seriam uma tentativa de fugir do estigma ligado à categorização como “negro”.