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24 de janeiro de 2019

COMUNICAÇÃO COMUNITÁRIA PARA A JUVENTUDE NEGRA E PERIFÉRICA

Curso do projeto Direito à Memória e Justiça Racial, do Fórum Grita Baixada, vem com sete módulos de conhecimento para desenvolver ações locais

 

Numa época em que as narrativas dos meios de comunicação empresarial começam a se tornar cada vez menos credíveis, já que suas linhas editoriais muitas vezes obedecem a critérios que hipervalorizam resultados como lucro ou ganho político, surgem, também, iniciativas que tentam dar voz e luz a pautas dos invisibilizados, com uma observação mais crítica da sociedade que conhecemos, além de enaltecer uma visão de mundo mais plural, democrática e solidária.

 

É o caso do projeto Direito à Memória e Justiça Racial, do Fórum Grita Baixada, que está realizando desde o dia 14 de janeiro, o curso de Comunicação Comunitária. Dividido em vários módulos como “Comunicação Comunitária e Grande Mídia”, “Racismo, Feminismo e Patriarcado”, “Jornais, a Linguagem Racista e de Gênero, o Poder e o seu Papel Ideológico”, “Mídias Sociais e Comunicação Segura”, “Fotografia”, “Produção Textual”, um de seus objetivos é formar uma rede de jovens comunicadores negros e/ou pobres na Baixada Fluminense para a construção de contra-narrativas em relação a mídia comercial hegemônica nos eixos de segurança pública, racismo e direitos humanos. O curso aborda temas como questões raciais, de gênero, entre outros, sob a perspectiva da consciência coletiva.

 

Com previsão de término para 6 de fevereiro, o curso, idealizado pelo Fórum Grita Baixada, pretende ser mais do que um simples amontoado de conhecimento.

 

“Nós queremos qualificar articulações, dar melhor fruição às nossas narrativas, ter acesso a projetos que possibilitem a formação de novas turmas. Nós precisamos potencializar o que já existe em diversas partes da Baixada”, explica Fransérgio Goulart, coordenador do projeto.   

 

A aula inaugural, realizada no salão paroquial da Igreja Nossa Senhora de Fátima e São Jorge, no Centro de Nova Iguaçu, conseguiu reunir nomes representativos da comunicação comunitária contra-hegemônica para expor suas experiências profissionais e de engajamento. Para abrir os trabalhos, foi convidado o ativista Raul Santiago, dos coletivos Papo Reto, do Complexo do Alemão, e do Movimentos, grupo formado por jovens favelados que discutem a política de segurança pública através da polêmica doutrina de guerra às drogas, e como isso afeta diretamente as populações periféricas. Um dos trabalhados desenvolvidos pelo Papo Reto é detectar, no menor tempo possível, as operações militares que adentram os territórios do Alemão e fornecer, através de uma rede virtual e local de comunicação, mediante aplicativo, informações que servem de monitoramento para as ações. Essa rede, segundo Raull, já salvou muitos moradores desavisados de serem mortos. Ele aproveita para fornecer um novo olhar sobre a comunicação de favela.

 

“Existir, no nosso caso, é resistir. Então nós acabamos descobrindo os nossos potenciais de comunicação dentro de uma favela. O papo da esquina, a arte, a poesia, fazer um slam, mandar aquele flow (composição rítmica dos versos de um rap) irado e por aí vai!”, exclama Santiago.

 

Quem também participou da aula inaugural foi a jornalista Tássia Di Carvalho, criadora da Agência IS, a primeira agência de comunicação que atende exclusivamente ações de impacto social. Relatando sua experiência como repórter periférica, ela disse que começou a trabalhar como publicitária. Uma de suas maiores lembranças, foram os relatos que diziam que poderia estranhar o universo de uma faculdade de comunicação, pois seria a única negra da sala.

 

“Isso me impactou de tal forma que eu ficava até com medo, embora isso nunca tenha tirado a minha coragem. Mas, confesso, que quase chorei quando eu vi que tinha negros, sim. Então, eu me perguntava: por que me alertavam tanto para algo que não acontecia? Foi a partir daí que percebi que o racismo é uma forma de apagamento também”, conta Tássia.

 

Ela também afirmou que ficou surpresa quando foi convidada para falar para uma plateia de futuros jovens comunicadores da Baixada Fluminense, ela que, ironicamente, já havia sido convidada para contar sua experiência de superação em congresso internacional. Tássia também comentou sobre como a periferia deixou de ser pauta nos grandes meios de comunicação. “Com o fracasso das UPP´s, parece que tudo aquilo que podia ser “favelizável” midiaticamente foi se tornando descartável: tinha um projeto que falava sobre comunidades no jornal O Dia, em que eu era colunista, e foi extinto, assim como também acabaram com o “Parceiros do RJ” (quadro do programa global RJTV em que repórteres advindos de comunidades com Unidade de Polícia Pacificadora pautavam assuntos comunitários). Mas espero que esse olhar periférico retorne para a grande mídia”, diz Tássia.

 

Feminismo versus Machismo     

A terceira aula do curso contou com a participação da jornalista Fernanda Nunes e da economista e sistematizadora de dados, Giselle Florentino, ambas do projeto Direito à Memória e Justiça Racial, do Fórum Grita Baixada. Intitulada “Racismo, Feminismo e Patriarcado”, abarca todas as problemáticas sociais que orbitam esse tripé. Como uma rede perversa, a desigualdade social, a má distribuição de renda, a falta de investimentos em educação de qualidade, dentre tantos temas correlatos, também ajudam a compor uma conjuntura que possibilita alimentar a sociedade capitalista e machista de nossa contemporaneidade.

 

Misturando o conhecimento das professoras e depoimentos dos alunos, a aula foi um grande debate acerca de seus temas. Sobre os clichês do que seria ser uma mulher, eis o que Giselle destaca.

 

“Nem o conceito de feminilidade nos agrada. Eu vi uma reportagem em uma revista que diz que os homens gostam de mulheres depiladas. Eu mando no meu corpo e não preciso enquadrá-lo para sustentar um estereótipo.”, afirma.

 

Ela também disse o quanto o racismo provoca, em termos de acepção de valores sociais, uma distorção ética e estética do que deveria ser “aceitável” em uma sociedade branca, heteronormativa e privilegiada como a nossa. 

 

“Quais são os nossos referenciais? Nossos irmãos de cor que buscam uma imagem de pertencimento social, precisam se parecer com um homem branco. Se vestir como ele, falar como ele. Mas eles estão sendo mortos, encarcerados, confinados em guetos. Então, a vulnerabilidade passa a ser o que nos rodeia o tempo todo e o processo de apagamento de nossa cultura e identidade vai se tornando mais cruel”, analisa Giselle.  

 

Fernanda analisa o quanto o machismo é prejudicial, inclusive para os próprios homens.

 

“É um sofrimento permanente o homem ser o provedor da família, porque se ele falhar nessa tarefa, vai se sentir humilhado, vai ser ridicularizado por quem não compreende essa situação e a partir daí vem a depressão, o alcoolismo, o uso de drogas e a violência doméstica. Ser economicamente insuficiente numa sociedade capitalista que não perdoa isso, ainda mais sendo negro e pobre, é devastador”, pontua Fernanda.   

 

A certificação do curso será de responsabilidade do Núcleo de Pesquisa Currículo, Cultura e Política da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), campus Nova Iguaçu e do Fórum Grita Baixada.

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Raull Santiago, dos coletivos Papo Reto e Movimentos, na aula inaugural do curso

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A jornalista Fernanda Nunes (à esq) e a economista e sistematizdora de dados, Giselle Florentino, na aula Racismo, Feminismo e Patriarcado