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26 de março de 2020

Entrevista do mês: Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado da Baixada Fluminense

Multiplicadoras da esperança

FGB conversa com o coletivo sobre militância, aprendizados pessoais após o luto e persistência na luta.

 

 

Depois de alguns anos acompanhando o trabalho dessas mulheres em várias circunstâncias, era chegada a hora de se fazer um balanço. Conversar sobre ganhos e perdas, aprendizados e desafios; o que conseguiram superar e o que ainda as atormenta. Elas são referência, mas querem ser mais. Não querem fama, querem a concretização de políticas públicas mais humanas para a população das periferias, de todas elas. Antigamente tinham uma filosofia de superação que transformava o luto em luta. O luto ainda dói, mas agora é “lutar para lutar”, como elas gostam de dizer. E, acreditem, elas lutam contra pessoas com as quais jamais sonhariam em ter um embate.  

 

Marilza Floriano, nascida em Duque de Caxias, orgulha-se de ter se tornado militante aos 50 anos. Começou sua caminhada na Frente Estadual Pelo Desencarceramento e, logo após, conheceu a Rede de Mães. Atua nesses dois espaços pois são iniciativas que se complementam. “São espaços onde você pode interagir com pessoas que lutam por Direitos Humanos, onde posso aprender sobre os meus direitos e multiplicar meu aprendizado”. Hoje ela se considera uma militante, uma ativista e multiplicadora do conhecimento. Ela encontra várias pessoas do sistema prisional, descobrindo uma série de violações tanto no sistema prisional como no socioeducativo. “Quantos óbitos acontecem sem que a sociedade ganhe conhecimento? Temos um super encarceramento e nada é feito para que se diminua isso”, lamenta. Ao ter um familiar preso, que já cumpriu sua pena, descobriu que membros da Frente se reuniam em grupos de whatsapp para acolher familiares de pessoas que estavam no sistema. Foi em um desses grupos que se sentiu acolhida. Após esse cuidado, trilhou o caminho que segue até hoje.

 

Josiane Martins veio de Campina Grande, no estado da Paraíba, com 16 anos de idade. Hoje aos 52, disse que, ao desembarcar no Rio, conheceu a verdade “nua e crua”, mais desumana. Sempre gostou de interagir e de ajudar jovens de sua idade. Foi parar no Condomínio Nova Ipanema, na Barra da Tijuca, onde morou por 10 anos, casando-se com o motorista José Aparecido de Oliveira, que viria a ser ministro da Cultura do ex-presidente da República, José Sarney (1986-1990). Jô, como é mais conhecida, chegou a morar no Lago Sul, residência do ministro. Com a morte do marido, retornou ao Rio e veio morar com a vó. Depois de dois anos de viuvez, já estabelecida no Leblon, veio para Nova Iguaçu, onde mora desde então. Ficou assustada com a violência da periferia, conheceu a pobreza dos inúmeros vizinhos. Seus laços com a comunidade envolviam diversos cuidados tais como levar idosos ao pronto-socorro mais próximo ou ajudar alguma mãe em trabalho de parto. Hoje trabalha num salão de beleza. Em 22 de maio de 2018 o filho foi assassinado. “Essa história mudou minha vida e hoje eu costumo dizer que não tenho medo de nada”, diz.  

 

Ilsimar de Jesus é natural da Várzea Nova, na Bahia, onde moram seus pais. Deixou a cidade com 14 anos por causa de uma sucessão de violências domésticas cometidas pelo pai que, não satisfeito com as surras que aplicava na filha, a expulsou de casa. Foi para Salvador, onde, segundo suas palavras, “foi pro mundo” e aprendeu a sobreviver sozinha. Com 16, veio para o Rio “apenas com o dinheiro da passagem no bolso”. Chegou numa quarta-feira no bairro do Rio Comprido, zona norte do Rio, morando na casa de uma amiga da mãe. No dia seguinte, já estava procurando emprego. Apenas 24h depois de desembarcar em uma cidade completamente desconhecida, já estava trabalhando como doméstica. Chegou a morar no emprego uma época e a experiência, diz, é repleta de algumas humilhações. Algum tempo depois, conheceu o marido com quem teve 3 filhos. Sempre teve como base na vida nunca desistir de nada. “Ou você luta por você ou ninguém vai fazer isso”. Tornou-se militante há quase 2 anos (no dia seguinte dessa entrevista, fariam exatos 1 ano e 9 meses que o filho foi assassinado). Achava que não iria sobreviver, mas o apoio dos outros dois foi muito importante para a sua recuperação. Considera-se muito acolhida pela Rede de Mães. E hoje o abraço que recebeu é o mesmo que distribui para tantas outras mães e familiares igualmente vítimas da violência como ela.

 

Luciene Silva tem 54 anos de idade. Define sua história como sendo a de uma mulher comum que veio da periferia de Nova Iguaçu. Mas a peculiaridade de sua trajetória começa ao se contabilizar os tantos lugares pelos quais passou. Nasceu no hospital Getúlio Vargas, na Penha, a mãe morava em Cordovil, a adolescência passou em Irajá, tendo uma rápida passagem por Brás de Pina, parando tempos depois em conjunto habitacional de Belford Roxo. Conheceu o marido aos 18 anos e nesse ano celebra as bodas de aventurina (uma pedra preciosa), símbolo da longevidade matrimonial de quem está casada há 37 anos.

 

Ela e o marido mudaram-se para São Paulo na esperança de encontrar novas oportunidades de trabalho, residindo na “terra da garoa” por 3 anos. Os sogros tinham um comércio em funcionamento que logo teve de fechar as portas em função de um episódio de violência envolvendo um cliente embriagado. Após o casamento e a temporada em São Paulo, Luciene retorna para Cerâmica, bairro da periferia de Nova Iguaçu, onde teve quatro filhos: Rodrigo, hoje com 33 anos, Rafael, Ronnie e Thaynara. Pergunta-se como foi para uma mãe criar 4 filhos, com as transformações próprias da idade e ela diz que os filhos sempre foram tranquilos, estudiosos e amantes dos esportes.

 

Alguns anos depois, em 31 de março de 2005, Rafael é assassinado em plena Rodovia Dutra (BR 116), no episódio que ficou internacionalmente conhecido com a Chacina da Baixada. Ele e mais 28 pessoas foram executados por policiais militares em Nova Iguaçu e Queimados, esta que é considerada a maior matança coletiva oficialmente registrada no Estado do Rio. Logo depois do ato criminoso, tomou conhecimento de algumas iniciativas que surgiram como resposta da sociedade à Chacina: como os movimentos AFAVIV (Associação das Famílias e Amigos das Vítimas de Violência na Baixada, sediado em Queimados) e Reage Baixada (sediado em Nova Iguaçu), no qual ingressou para, enfim, compor a Rede de Mães Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense que, dentre tantos objetivos, luta pelo direito à memória e justiça social, políticas de reparação psicossocial e econômica para as mães de filhos assassinados por agentes de segurança do Estado.

 

Entrevista a Fabio Leon

 

Vocês contribuíram para uma série de discussões sobre segurança pública e direitos humanos através do documentário “Nossos Mortos Têm Voz[1]” em escolas, universidades, espaços de culto e de fé, rodas de conversa com profissionais da assistência social e da psicologia. Queria que vocês fizessem uma análise sobre as reações e as conversas que vocês tiveram com esses e outros públicos.

Marilza: Eu percebi que a grande maioria das pessoas não conhece a Rede de Mães, não têm um olhar de empatia sobre os homicídios na Baixada Fluminense. A violência é quase sempre naturalizada e banalizada, mas faz parte da construção histórica dos nossos territórios. O documentário impactou de tal forma as pessoas que elas começaram a refletir, principalmente em função do depoimento das mães. Com isso, elas ficavam sensibilizadas. Daí as exibições foram de escola em escola, universidade e universidade e, com isso, resgatou-se a importância de se falar, novamente, sobre violência na Baixada Fluminense. Contribuiu para tirar um pouco essa invisibilidade que existe na Baixada e quebrar o silêncio que existia em relação aos assassinatos e da militarização da vida na região. Nossas vidas são atravessadas de diversas formas. Um dado interessante é que nos espaços que dialogávamos com os jovens, eles sempre se sentiam como alvos. A partir daí outros diálogos foram surgindo como, por exemplo, o racismo estrutural com o qual sofre a população preta, pobre e periférica da Baixada e de tantos outros lugares. Surgiram conversas sobre o que vestir em determinados lugares, ter sempre documentos em mãos, até que horas pode ficar na rua.

 

Josiane:  A primeira exibição que aconteceu no bairro onde moro foi impactante. Foi em uma escola e deveria ter umas 500 pessoas entre funcionários, alunos e professores. Mas o que foi mais emocionante foi o documentário ter sido apresentado no colégio onde estudo. A diretoria, junto com os professores, elaborou um relatório sobre a repercussão que o filme causou lá. Recebi vários bilhetes de apoio dos jovens. Me lembro dos olhares, dos abraços. Assim sendo, outras programações devem acontecer.  

 

Luciene: Eu levei o documentário para a subsede na Baixada Fluminense do Conselho Regional de Psicologia e pra uma unidade do CRAS (Centro de Referência em Assistência Social), ambas em Nova Iguaçu. Acho que esses profissionais absorveram um pouco o sentido do documentário. Em todas as exibições, eu percebi, na fala dos profissionais, o impacto que causou neles. Você aprender teoria na academia é uma coisa. Quando você vai ao território é outra completamente diferente, outra realidade. Eles a conhecem, mas o que o documentário trouxe pra eles vai além. Por exemplo: o trabalho de Serviço Social dentro dos CRAS, muitas vezes não traz uma sensibilidade sobre os casos com os quais eles trabalham. Eles (os profissionais) não percebem que dentro daquele atendimento existe um estudo de caso. Tudo começa com uma entrevista. Se naquela entrevista, o profissional não abrir os seus ouvidos para a escuta e não for mais a fundo naquela entrevista, ele deixa de perceber demandas muito específicas. Existem muitas situações. Ele pode deixar de perceber um problema de violência doméstica ou de abuso sexual, inclusive com crianças. Ou de uma mãe que teve um filho assassinado, que está no tráfico ou que está preso. São observações nada superficiais, mas não estou dizendo que todos não fazem isso. Mas isso também acontece por causa do dia a dia muito corrido nesses equipamentos. Acaba virando um exercício profissional muito mecânico. Mas, voltando ao documentário, as psicólogas e as profissionais do Serviço Social se mostraram impactadas também. São falas de pessoas que observaram uma outra dimensão da violência que elas ainda não tinham: uma outra prática que a academia não pôde oferecer. Quando estávamos nas universidades, eu levei a minha vivência para a academia. Meus professores de Serviço Social me chamaram para que eu palestrasse em várias aulas.

 

Ilsimar: Eu percebi uma grande deficiência de informações. O não conhecimento da existência de uma Rede de Mães e o que fazemos. Essa primeira impressão é muito visível. Mas sempre explicamos a nossa origem. Pedimos sempre aos públicos que levem essas informações para outras pessoas que também não nos conhecem. Nós não fazemos milagres, mas fazemos o papel que muitas instituições não fazem e, principalmente, o que o Estado não faz. O Estado faz vítimas, isso todo mundo já sabe, e ele não se importa com essas vítimas. Ele não sabe acolher de nenhuma forma as vítimas que ele mesmo produz. A violência não está apenas na perda, há vários tipos de violência envolvidas. Nós abraçamos, acolhemos, ouvimos e até convencemos que aquelas famílias destruídas pela violência precisam de um tratamento que envolva reparação psíquica. Muitas famílias desconhecem absolutamente que exista esse tipo de tratamento. Primeiro, porque é muito raro você conseguir uma psicóloga numa unidade básica de saúde sem precisar pagar. Se encontrar atendimento de graça, você tem que voltar daqui a 6 meses porque já tem 60 pessoas na sua frente. Psicologicamente, você encontra poucas pessoas que conseguem se manter de pé depois de um trauma desses. Elas entram em crise e acabam cometendo atentados contra a sua própria vida. Tentamos evitar que essas famílias encontrem outras formas de violência. E esses profissionais da saúde não têm a exata dimensão desses traumas. Sobre os profissionais da Educação, fizemos uma exibição do filme Nossos Mortos Têm Voz no colégio Rubens Farrula, em São João de Meriti, através de um pedido que foi feito a Marilza [Floriano]. Os próprios educadores dizem que estão aprendendo muita coisa, na forma, inclusive, de lidar com os alunos que convivem diariamente sob o contexto da violência, como explicar da forma adequada o que são Direitos Humanos. E não apenas os alunos e professores... mas os pais desses alunos também têm aprendido.     

 

O que significa para vocês pertencerem a um coletivo como a Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado na Baixada e encontrarem nos seus cotidianos o combustível para transformar o luto em luta?  O que a militância significa pra vocês? O que vocês aprendem com ela?

Marilza: A militância se constrói a partir do momento em que você vive em um território onde já existe uma série de violações de Direitos Humanos. E essas violações te fortalecem para que você lute por aquele espaço. Ao militar com o público do sistema prisional e socioeducativo, pude perceber que muitas mães não tinham informações sobre acesso à justiça e, ao voltar pro território, fui pensando em estratégias de prevenção para impedir o aumento do encarceramento em massa. Eu faço o mapeamento de redes de apoio, identifico as demandas e os espaços para onde devem ser feitos os encaminhamentos. Quem quer atendimento jurídico, psicossocial... quem são as mães que precisam desses atendimentos, se tem jovem que está com problemas de saúde mental em função de episódios de violência. Pois essas famílias moram em locais onde não têm acesso a lazer, esporte e cultura. Estou sempre à procura de informações pra multiplicar no território. Disponibilizo contatos do Ministério Público, Defensoria Pública, ensino como acessar as secretarias de saúde e educação. Têm situações que você tem de ir junto, têm situações em que as pessoas não possuem recursos financeiros pra pegar um ônibus.. pra terem acesso a esses equipamentos. Todos os dias eu faço esse exercício, inclusive pelas redes sociais. Tem muita coisa envolvida e a grande maioria delas não sabe por onde começar. O principal desafio é explicar para essas pessoas o que são Direitos Humanos. Combater um senso comum sobre isso, de que apenas defendemos bandido. Nossos direitos, enquanto seres humanos, também envolve reivindicações tais como ter a nossa rua asfaltada, ter creche, praças, postos de saúde nas comunidades. E fazer com que as pessoas entendam que não é natural as pessoas serem executadas. Eu me preocupo muito com os processos de linchamento virtual que existem na Baixada sempre que uma pessoa pobre, preta e periférica é assassinada; é preciso esclarecer que pra cada pessoa que morre, existe uma família que está chorando essa morte que acontece. Que as famílias não precisam ficar provando a inocência de quem morreu. Ninguém tem o direito de tirar a vida de ninguém. Pois não temos pena de morte no Brasil.

 

Josiane: Eu acho que o amor está morrendo. O que me assusta é que as pessoas debocham algumas vezes do trabalho que fazemos. Que Direitos Humanos é pra defender bandido. E que você é bandido também. O mais incrível é que é uma visão de pessoas que estão ao nosso redor, que participam de nosso convívio, que se dizem militantes. O mais doloroso pra uma mãe é perder um filho e provar que perdeu de forma covarde, que ele não estava procurando por isso. Eu nunca duvidei do filho de ninguém.

 

Então, essas pessoas não entenderam o trabalho de vocês, os seus papéis nesses territórios...

Josiane: Nunca fiz julgamentos precipitados sobre os filhos ou parentes de ninguém. E olha que sou uma pessoa muito sincera. Nunca escondi de ninguém, principalmente da militância, quem era meu filho, o que ele fazia. Ele era envolvido, sim. Mas isso não dá o direito de ninguém tirar ele de mim da forma como ele foi tirado. Mandaram as fotos do meu filho morto, dizendo que “ele havia rodado”. Independentemente do que ele fosse, ele era meu filho. Ele estava com mais três pessoas que foram assassinadas com ele. Me disseram que o camburão ficou passeando por várias horas com os corpos para que eles não tivessem nenhuma chance de sobrevivência ao chegarem no Hospital da Posse. Três chegaram mortos, mas o corpo do meu filho ainda estava quente. Eu fui a única que fui fazer o reconhecimento. Eu não gosto quando duvidam da minha dor e do meu luto. Porque quando falam mal de mim e sobre o trabalho que faço, essas pessoas acabam me matando um pouco mais também. Mas eles acharam que estavam me derrotando. Muito pelo contrário. Eu consegui mais força para prosseguir porque agora minha meta é ser o diferencial para a sociedade. 

 

Luciene: De um ano pra cá tanta coisa aconteceu...Mas nesses últimos 14 anos em que milito pela vida, eu aprendi que preciso conviver com as diferenças. Cada mãe e familiar diz assim: “ah estamos unidas pela dor”. Concordo, mas pra cada pessoa, a dor é diferente. Cada um vive de uma forma. Não podemos querer que o outro pense igual a gente. No primeiro ano da caminhada em memória da chacina, foi muita gente, lotamos a Dutra. Acho que foram umas 500 pessoas. Autoridades e políticos foram...Tem até um documentário chamado “Luto Como uma Mãe”, que mostra a quantidade de pessoas que foram. Os meninos da Casa do Menor batucando instrumentos de percussão. Muito lindo! No terceiro ano, não tinha a metade da metade. Eu ficava revoltada. Dizia: “gente foram 29 vítimas!! Só em Nova Iguaçu foram 16!”. Eu ia na casa das pessoas, convocando tudo de novo. Carlinhos, meu marido, foi muito parceiro nessas horas e não me deixou pirar. Montaram um palanque na rua Gama (um dos cenários do massacre), aqui em Nova Iguaçu trocaram o nome de uma escola e a rebatizaram com o nome de um dos meninos mortos. Teve discurso do prefeito. Eu falei pelas famílias das 29 pessoas mortas, porque ninguém quis ir! Insisti, não tive resposta e tomei a iniciativa de dizer algumas palavras. Tive problemas com as famílias depois. Me chamaram de metida, que eu queria aparecer. “Ela tem estudo e se acha melhor do que todo mundo”. Isso nunca me incomodou. O que me incomodava era a ausência das pessoas. Uma amiga psicóloga disse uma coisa que me aliviou muito. Ela disse: “Luciene, você escolheu ser militante, você escolheu essa vida. Você não pode querer que todas as pessoas que sofreram com isso tenham a mesma atitude que a sua”. A partir daí, comecei a refletir e pedir sabedoria a Deus. Não importa quantas pessoas irão nas futuras caminhadas. Eu mantive esse compromisso com Raphael, meu filho. Porém, o que mais me entristece é ter desavenças no nosso meio. 

 

Ilsimar: Eu sofri e ainda sinto na pele isso. No lugar onde moro, lá em São João de Meriti, as pessoas dizem que eu posso lutar o quanto eu quiser que isso não resolverá nada. Tem esse pensamento: “de que adianta você entrar numa briga se nada vai ser solucionado?” Outras apoiam, dão força. Acham importante o trabalho que estamos fazendo, nos abraçam. “Ainda bem que existem pessoas que fazem um trabalho como o seu”, dizem. Então, percebo que há muita solidariedade. Mas também digo que se houvesse mais pessoas agindo como nós agimos, talvez pudéssemos resolver tantos problemas em relação aos homicídios na Baixada. Se elas lutassem junto comigo alguma coisa ia ser mudada.

 

Mas quando existem essas tentativas de desistência em relação ao seu trabalho como militante, você percebe que existe uma má-fé ou há uma preocupação genuína em relação a sua segurança e a sua saúde mental?

Ilsimar: Teve uma pessoa que chegou pra mim e disse que eu vou me desgastar, vou ficar mais doente. Aí eu respondi o seguinte: enquanto eu estiver brigando pela minha causa e ajudando a causa de outras pessoas, isso vai me manter viva e não vai me adoecer e outras pessoas vão perceber a importância dessa luta. Na militância, a luta tem de ser diária para que você seja escutada, pra mudar situações que pessoas acham que não têm mais solução. E muitas situações têm solução sim. Ainda mais se for dentro da lei. É preciso persistência, ainda mais vivendo na Baixada Fluminense. A violência aqui invade as nossas casas por agentes que deveriam nos defender. Por isso que dizem que essa luta é em vão, mas ela não é. Tem outras famílias que precisam saber que nós existimos, escutar as nossas vivências de luta. O trabalho de uma militante, acima de tudo é trabalho de formiguinha. Você não é militante para ser vista, mas, sim, para salvar vidas. Se nós nos calarmos, quem vai fazer com que as leis saiam do papel, quem vai lutar por nossos direitos? Nós queremos dar voz a essas famílias.  

 

Como vocês desenvolvem a militância num conjunto de territórios tão grande como a Baixada?

Marilza: O maior desafio é a mobilidade. São 13 municípios e alguns deles são muito distantes. Para sair do distrito onde moro, em Duque de Caxias, pra ir a Nova Iguaçu, por exemplo, são quase 2 horas de trajeto. Dependendo do trânsito, são mais de 2, quase 3 horas de demora. Só em Caxias, são 4 distritos. E pra você se deslocar entre os distritos, às vezes são necessários dois transportes. Então, há um custo envolvido, e a própria questão da segurança, pois você só pode exibir o documentário “Nossos Mortos Têm Voz” em lugares muito estratégicos. E ainda tem a preocupação com a fala e os temas abordados. Dependendo do local, às vezes exibimos o filme Nossos Mortos Têm Voz e logo após só perguntamos pra pessoas o que elas acharam. Há muitas denúncias e relatos após as exibições, principalmente sobre o silenciamento nesses territórios. É um desafio, às vezes muito cansativo, mas é a realização de um trabalho de militância.

 

Josiane: Onde moro já é bem grande e às vezes não dou conta. Eu não tenho como acolher pessoas fora do meu território, pois é tudo distante. Eu cheguei a montar um grupo de whatsapp para acolher um grande número de pessoas de outras regiões, pois eu soube que têm mães na Ilha do Governador que querem a nossa presença lá. Mas como faz? Nesse grupo fiquei sabendo que duas crianças haviam desaparecido e tínhamos que ir lá abraça-las. Uma outra chegou a perder o neto. Essa semana mais cinco me chamaram pra conversar e ainda preciso dar conta da minha vida pessoal também, né?   

 

Luciene: A gente não tem perna pra ir pra todos os municípios da região. Mas eu meu sinto recompensada quando preciso ir a um desses territórios, como foi lá em Austin e São João de Meriti. Mas, ao mesmo tempo, nos sentimos impotentes. Isso nos impacta de maneira muito negativa. A gente quer resolver, quer abraçar tudo de uma vez e não consegue. Somos poucas diante de uma realidade de violência tão imensa nos territórios da Baixada. Apesar disso, acabamos nos tornando uma referência.

 

Ilsimar: Sim, nós temos muitas limitações, muitas delas já expostas pelas meninas. Precisamos de mais recursos para que possamos ir para outros lugares. Pois nos chamam todos os dias! Ou de fazer com que familiares em alguns territórios possam se deslocar para ir em outros locais com segurança também. A gente vai em lugares onde não sabemos como entrar e sair. Isso quando os motoristas de aplicativo ficam muito receosos dos lugares onde vamos ir, por acharem que podem ser um risco para eles. Nós até auxiliamos nos caminhos para que esses profissionais não se sintam em perigo. Afinal, eles também têm famílias e isso é uma de nossas principais preocupações. Eles também fazem parte de nossa responsabilidade. Mas quando não dá pra ir, nós vamos a pé! Sempre procuramos obter informações prévias dos locais onde vamos. O não atender é uma forma de omissão e não estamos aqui para sermos omissas ao atender essas famílias. Mas ainda conseguimos fazer um trabalho de acolhimento que é favorável. E é isso que nos dá ânimo para seguir em frente.

 

[1] O documentário Nossos Mortos Têm Voz (2018), é dirigido e roteirizado por Fernando Souza e Gabriel Barbosa e realizado pela Quiprocó Filmes, com apresentação do Centro de Direitos Humanos da Diocese de Nova Iguaçu e do Fórum Grita Baixada; contou com patrocínio de Misereor, Fundo Brasil de Direitos Humanos e Fundação Heinrich Böll Brasil.