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31 de janeiro de 2020

Entrevista do mês: Flavia Oliveira

"Não existe cortina de fumaça e, sim, um projeto de governo."  

Fórum Grita Baixada conversa com a premiada jornalista de economia sobre mulheres no jornalismo, “privilégios da exceção” e suas ligações familiares com uma importante representação da Baixada Fluminense

 

Dizem que jornalistas de economia são obcecados por números. Então vamos a alguns deles. Flávia Oliveira, completa 50 anos de idade e 28 de carreira nesse ano de 2020. No confortável apartamento na Lagoa, onde quase três horas de conversa expuseram uma vida pulsante apesar da frieza das estatísticas, balanços e decisões governamentais das quais sempre precisa noticiar, sua estante expõe exemplares literários que ajudam a interpretar a sua inquietude. Empilhados, estão as memórias do fotógrafo Evandro Teixeira, um mestre da precisão e da poesia com as imagens, e logo abaixo um exemplar sobre a vida do artista inglês Banksy, que as utiliza para desestabilizar o sistema, especialmente com seus grafites anárquicos.

 

Em seu lar, reina uma democracia estética que só alguém com uma pecepção extremamente pluralista do mundo poderia absorver com tal equilíbrio. Uma árvore de Natal divide o espaço da sala com uma imagem de meio metro representando Iemanjá (ela é candomblecista). Mais alguns passos e o convidado se depara com uma bandeira da escola de samba Beija-Flor, de Nilópolis.

 

Aliás, a Baixada Fluminense é uma testemunha de sua trajetória. Estagiou em um jornal local de Duque de Caxias e descobriu-se parente, ainda que de segundo grau, de uma das mais combativas e apaixonantes defensora dos Direitos Humanos da região, como poderá ser constatado no final da entrevista. Duas colegas de trabalho, forjadas na luta antirracista e reconhecidas pelo seu engajamento político, também são crias da Baixada e nutrem uma admiração recíproca. No caso, as jornalistas Cintia Cruz, meritiense da gema, que desinvisibiliza a Baixada com suas reportagens no jornal Extra e Luciana Barreto, iguaçuana de corpo e alma, que está em vias de ser uma das apresentadoras do canal de TV CNN Brasil, previsto para estrear em março.     

 

Flávia precisa do capitalismo para o exercício do ofício, mas não deixa de ser uma de suas principais críticas. Autointitula-se uma jornalista de socioeconomia, trazendo certa militância em seus comentários sobre indicadores sociais, empreendedorismo, desigualdades de gênero e raça e segurança pública. Mas ela não é apenas isso. Ela quer ser mais. E esse mais é escancarar certas fronteiras que delimitam sua especialidade e sua trajetória,  como ela explica durante o percorrer da leitura.

 

Formou-se em jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF). É técnica em estatística pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE). Está ou esteve em praticamente todas as plataformas midiáticas das Organziações Globo (jornal, TV, rádio, internet). Integra variados conselhos consultivos como os da Anistia Internacional Brasil, da ONG Uma Gota no Oceano, do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), do Observatório de Favelas e da Agência Lupa. Integra, ainda, a comissão de matriz africana do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro.

 

Ela é a exceção da regra que perversamente incorpora a grande maioria da população negra do país. Filha de mãe solteira, nascida e criada no Irajá, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, não passou fome, não conheceu a miséria, apesar da origem humilde. Recebeu todas as assistências e estímulos necessários para se tornar uma excelente profissional na área que escolheu. A mãe sempre a estimulou a estudar, ler, pesquisar. Mas isso não a livrou de episódios escabrosos de racismo e machismo. Flávia tem a exata noção do peso e do prazer de ser uma referência para tantas e tantos.

 

Entrevista a Fabio Leon

 

O jornalismo do país informa bem?  

Se formos falar de jornalismo impresso, ele é maduro, bem estruturado, do ponto de vista da quantidade de empresas jornalísticas. Temos três grandes jornais nacionais, como o Globo, Folha e Estadão, três outros veículos de grande representatividade local, como o Correio Braziliense, Estado de Minas e o Zero Hora, mas de repercussão nacional em várias situações. Em cada grande capital, você tem um veículo local que tenta corresponder à essas expectativas. Considerado suas hegemonias, o caráter corporativista de uma organização empresarial robusta, que gera empregos, a sofisticação de determinados projetos editorais ou gráficos, eu diria que sim. Mas os jornais brasileiros carecem de diversidade. É uma crítica que faço há 28 anos, desde que entrei nessa profissão, até por me entender como peça, uma adição de diversidade num universo tão semelhante a tantos espaços de poder no Brasil, ainda dominada por uma classe média masculina branca. Então, do ponto de vista de gênero, raça e classe você ainda observa muita homogeneidade nas redações de jornais, na TV...Que em alguma medida não compromete a qualidade da produção que se faz, mas precisa ser mais diversa. A constituição das empresas jornalísticas brasileiras nasce de um país segregado. Quem tinha poder de compra pra consumir informação? Era a classe média das grandes cidades. Então fazia sentido você produzir um tipo de notícia que só seria consumida por um determinado tipo de leitor, pertencente às mesmas estruturas de poder. A partir da década de 1970, você tem o aumento da escolaridade feminina, uma entrada cada vez maior das mulheres no mercado de trabalho e, posteriormente, o aumento do acesso às universidades, através do sistema de cotas, que fez com que aumentasse o número de jovens negros da periferia. Que não apenas viraram consumidores de informação, mas produtores de suas próprias informações. O que gera um tensionamento maior, uma competitividade, por assim dizer, das empresas jornalísticas aumentarem essa diversidade. Hoje você tem uma TV Globo com muito mais jornalistas negros do que você teve anteriormente, embora, ainda em termos de proporcionalidade, não estejamos representados. A presença feminina no jornalismo também precisa ser considerada, é uma vitória sob vários aspectos, mas, de novo, é um processo que se manifesta em uma política voltada para o aumento da diversidade e de gênero, mas que sempre privilegiou mulheres brancas. Racialmente falando, é um aparente equilíbrio. Embora estejamos vivenciando uma época em que pressões estejam produzindo resultados e provocando as estruturas de maneira crítica. Agora, quando falamos de mídias sociais e smartphones, percebemos uma nova maneira de informar que se consolidou através da comunicação comunitária ou nichos voltados a segmentos da população com excelentes produções de conteúdo, mais provocadores, absorvendo reflexões que antes pertenciam a uma natureza mais jornalística e com narrativa mais corporativa. E o que é mais interessante: muitas vezes essa mídia alternativa pauta a mídia tradicional, seja através de uma provocação ou desconforto. É um momento interessante. 

 

Estamos virando uma raça em extinção como disse o presidente Jair Bolsonaro?

Discordo frontalmente. Quem faz uma afirmação desse tipo, desconhece a relevância e a percepção de que uma sociedade democrática só sobrevive a tantos ataques, tendo acesso à informação. Esse é um papel fundamental do jornalista enquanto profissional dedicado a apurar informações e apresentá-las de formas variadas pra diferentes plataformas e públicos. Não estou falando necessariamente de veículos de imprensa. Talvez porque exista uma ideia de profissão para qual eu fui educada e de onde se percebia a possibilidade de ser estável, de se alcançar outros patamares, pelo o que eu produzia, e hoje não se alcança mais. Eu me formei em 1992 e, naquela época, existiam muito mais empresas de comunicação do que hoje. Foram extintas só aqui no Rio, a Revista Manchete, a Gazeta Mercantil, o Jornal do Commercio, o Jornal dos Sports, a Tribuna da Imprensa. Temos que nos entender como profissionais de comunicação capazes de garimpar e obter a informação. Não ficar atrelado somente a um perfil profissional ou a um modelo de negócio. Você pode se formar e trabalhar no Greenpeace, na Anistia Internacional, no Fórum Grita Baixada, no Voz da Comunidade, no Maré de Notícias, ser um comunicador do Observatório de Favelas. Você tem vários formatos de comunicação.   

 

O que você tem achado do crescimento da chamada imprensa assumidamente de direita como a Revista Crusoé e o site O Antagonista, que apoiaram a candidatura de Bolsonaro e agora são alguns de seus críticos mais ferrenhos?

Acho que o Brasil está vivendo um certo ambiente de arrumação sobre a forma como a imprensa, entes econômicos, formadores de opinião e academia costumavam lidar com o poder, principalmente com a vinda de um governo novo e surpreendente e nas quebras de vários protocolos institucionalizados que se observam no caminho. Acho que a esquerda e a direita, em todos os governos, acabavam tendendo pro centro, na direção de fazer concessões, de promover diáogos, aproximações e construções de algumas pontes. Isso aconteceu com Sarney, Collor, mesmo promovendo uma abertura econômica inédita na história do país, Fernando Henrique, Lula e até com Dilma. Havia uma expectativa de que, chegando à presidência, Bolsonaro se flexibizaria, suavizaria o seu diálogo até com seus opositores. Mas isso não aconteceu. Ele continuou apostando nesse modelo de comunicação direta, as lives que ele produz a qualquer hora do dia, além das quintas-feiras, o contato direto com seguidores quando chega e sai do Palácio do Planalto, que já se tornou uma marca do seu governo. Mas acho que quem o defendeu no início acabou se espantando. E considero positiva essa revisão de pensamento, pois viram que, apesar das razões que o levaram ao poder serem legítimas, do ponto de vista dessas pessoas que o apoiaram, elas preferem a manutenção da democracia e das instituições democráticas. Entretanto, eu não posso esperar que mesmo um veículo de comunicação mais à direita, não se indigne ou não reaja quando mais de um membro do governo naturalize a ideia de uma volta do Ato Institucional no.5[1]. Ou não critiquem ou se revoltem com declarações que surgiram quando da crise das queimadas na Amazônia, cuja fumaça chegou a escurecer São Paulo, ou as manchas de óleo que apareceram nas praias do Nordeste ou da gestão atabalhoada do ministro da Educação e os erros de português que ele comete. Enfim, para se autointitular democrata, é preciso defender a democracia. E isso é uma obrigação de todos os brasileiros.

 

Mas e essas cortinas de fumaça discursivas que eles produzem? Está mais do que claro que é estratégico, pois se desvia das grandes propostas governamentais, que estão numa fase de desenvolvimento e ninguém sabe exatamente para onde vão.

Eu não gosto de chamar de cortina de fumaça. Porque eu acho que algumas dessas declarações refletem mesmo um tipo de pensamento muito equivocado desse grupo que está no governo. O que eu penso: eles vão testando algumas ideias e no fim das contas, algumas acabam sendo efetivamente implementadas. Por exemplo. Teve uma semana que eu escrevi uma coluna sobre a questão da abstinência sexual proposta pela ministra Damares (Alves, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos). Uma reportagem do Globo que ressuscitou o tema, dizia que ela já planejava, em palestras, a ideia de diminuir os índices de gravidez precoce no Brasil, através da prática da abstinência, quando a ministra era somente uma advogada e pastora. E nesses eventos, já tinha um grande número de líderes religiosos que aprovavam o que ela dizia. E o que aconteceu? O Ministério da Saúde anuncou que iria suspender, tempos depois, a distribuição de uma cartilha e uma caderneta a jovens alunos do sistema de ensino sobre direitos sexuais e reprodutivos, além de métodos contraceptivos. Essa matéria do Globo foi publicada no finzinho de 2019, mas quando eu fui pesquisar o tema relacionado ao ministério da Damares, eu percebi que ela já fornecia declarações avulsas sobre isso, inclusive em uma entrevista para a BBC no primeiro quadrimestre do ano passado. Naquela época, falou-se muito de que seria uma cortina de fumaça para enfraquecer os debates sobre as mudanças da previdência social. Mas quando você exercita a memória e vai analisando o passo a passo do processo, já se revela um pensamento estruturado e que, meses depois, iria se transformar em uma política pública de fato. Então, eu acho que eles não estão falando de brincadeira ou pra chocar quem discorda dessa agenda. São ideias de um projeto que pertencem a esse grupo, mas, talvez com a inexperiência de gestão da máquina pública, não puderam ser aplicadas de imediato. O que eu tenho refletido é que esse novo governo brasileiro precisa ser analisado e interpretado sob uma ótica diferente do que a gente se acostumou. Não é a mesma lente.        

 

Você afirmou que as grandes empresas de jornalismo estão enfraquecidas e cada vez mais perdem espaço no mercado, em detrimento das novas formas de disseminar informação, como as fake news em mídias sociais. Como o jornalismo se qualifica diante desse cenário e considerando que somos um país com altos índices de analfabetismo e com pouco acesso à informação de qualidade?

O letramento formal é saber ler, escrever e interpretar. Realmente, o Brasil tem um enorme déficit do ponto de vista de média de escolaridade e de qualidade de formação de quem conseguiu concluir o ciclo básico de ensino. Nós temos um problema de insuficiência de quantidade de anos de estudo, cuja a média é de 9 anos e a qualidade dentro desse contexto também é complicada. Está longe de ser uma excelência. Mas vamos observar uma outra analogia do que seja letramento, no que diz respeito a compreensão de linguagens, mensagens e informação em outras plataformas. Nesse sentido, nunca tivemos tantas oportunidades de compartilhar e produzir mensagens e conteúdos dentro das mais variadas formas: áudios, vídeos, memes, pequenos cartazes. Cada um de nós virou um produtor de conteúdo, mas poucos têm essa missão como ofício. É fundamental não nos rendermos a uma dimensão de carência que é baixa escolaridade. A maior taxa de analfabetismo está concentrada na população com 60 anos ou mais. Mas mesmo essas pessoas mais antigas são capazes de aprender, incorporar e absorver conhecimento. Tanto que eles retornam ao mercado de trabalho após a aposentadoria, voltam a sustentar famílias. A história oral é uma forma de transmissão de conhecimento ancestral, sofisticada e eficiente e nos trouxe até aqui. Daí é que temos que nos perguntar como as comunidades quilombolas e indígenas sobrevivem iletradas, de ponto de vista eurocêntrico, até hoje. Eu sou filha de uma geração de mulheres iletradas que avançaram no seu tempo, migraram, saíram do Nordeste, se inseriram no mercado de trabalho da forma que era possível. O fato dessas pessoas não saberem ler ou escrever não significa que elas sejam merecedoras de uma informação de baixa qualidade. Ela pode ser produzida dentro de uma forma que elas compreendam. Essa percepção equivocada, de que essas pessoas não têm compreensão sobre o que os meios de comunicação produzem, reside muito de uma falta de diálogo semelhante a, por exemplo, como as esquerdas se comunicam com a periferia. São determinados pragmatismos que precisam ser revistos com urgência.     

 

Você é um ponto fora da curva. Mulher negra, de origem humilde, jornalista especializada em Economia em um dos maiores conglomerados de comunicação do mundo. Você se sente uma referência para as jovens periféricas que queiram trilhar esse caminho?

Eu sinto o peso de uma certa responsabilidade. Mas isso, de certa forma, é prezeroso.  De se saber uma referência, de ter esse reconhecimento. Sou procurada por jovens estudantes, tento ser bastante acessível, até porque isso diz respeito a minha própria trajetória, que transcende uma mobilidade social que não está posta para todos os brasileiros. Sou a exceção que confirma a regra e tento não ser cínica em relação a isso. Não posso dizer “se eu consegui, qualquer um consegue”. Eu era filha única de mulher que foi largada pelo marido, que trabalhava como datilógrafa, que valorizava a educação, que me pressiovana muito a estudar, que quando manifestei interesse de cursar a minha formação, me apoiou desde o início, que não me obrigou a trabalhar para sustentar a casa. Eu não tinha irmãos, portanto eram menos bocas para comer. Não sou uma negra retinta num ambiente muito racista que é a sociedade brasileira. Tenho um tom de pele mais discreto e menos ostensivo. Eu tenho consciência dos meus privilégios e das pequenas peças que me tornaram essa exceção. E até por saber disso, eu reafirmo diariamente o meu compromisso de denunciar essas assimetrias e desigualdades e de levar um ponto de vista que passe por essa experiência de vida que tive e não a que tenho. Senão eu viveria apenas de “White people problems”[2]. Hoje, por exemplo, eu tive que comprar várias garrafas de água mineral por causa da situação envolvendo a distribuição de água no Rio de Janeiro. Mas quantas pessoas podem ter esse privilégio?

 

 

 

 

“A presença feminina no jornalismo também precisa ser considerada, é uma vitória sob vários aspectos, um processo que se manifesta em uma política voltada para o aumento da diversidade e de gênero, mas que sempre privilegiou mulheres brancas”.

FLÁVIA OLIVEIRA

 

 

 

 

Falando nisso, o rapper Emicida, em uma de suas letras, disse que o Brasil é o único país do mundo em que você precisa pedir desculpas por ter feito sucesso, se vem de origem pobre. Que a vida confortável ou mesmo se alienar é quase uma afronta em função de tantos que não podem ter o mesmo padrão de vida. O que você acha disso?  

Eu concordo e admiro muito o trabalho do Emicida. Eu acho que ele está numa fase de reflexão depois de um grande período de denúncia. “Amarelo” é um álbum em que ele se permite um desfrute, falar de afeto, de botar a gargalhada da filha bebê dele, de ser romântico. Não vejo contradição em se ter uma vida confortável e continuar militando contra a desigualdade brasileira, denunciar a necropolítica, o racismo ambiental, religioso, o machismo, o sexismo, independentemente das conquistas individuais de cada um. Eu sei que integro um grupo que é historicamente marginalizado e oprimido. Não posso fingir que isso não está acontecendo. Essa é a marca do tipo de jornalismo que eu faço. De uns 6 anos pra cá, quando me tornei mais independente, pelo fato de não ter mais uma relação de trabalho celetista com as empresas jornalísticas das quais tenho um contrato, me permiti dividir o tempo entre o meu trabalho jornalístico convencional e o ativismo pelas mulheres, pelos jovens negros favelados, contra o racismo e a intolerância religiosa. Voltando um pouquinho sobre o que eu falei sobre responsabilidade, acho importante eu aparecer de cabelo crespo na GloboNews falando de economia. Sei que estou quebrando um estereótipo. Muitos perguntam assim pra mim. “Você é jornalista de quê? De cultura, de sindicato?” “Ué? Você não é passista de escola de samba?” (pergunta de forma bem irônica). Quando respondo que sou de economia, é um espanto. A foto não casa com a descrição da personagem (risos) Quer dizer...não posso me dar o desplante de ser uma “preta fútil, preta patricinha” 24 horas por dia. Eu não tenho esse direito, porque o Brasil é desse jeito. Ou tenho? Não sei. Eu sei que preciso falar sobre a objetificação e sexualização da mulher preta, dos altos índices de feminicídio que atingem muito mais as mulheres pretas e periféricas, da falta de representatividade nos poderes, sobre as declarações racistas feitas por autoridades. Em contrapartida, às vezes eu gostaria muito de ser entrevistada sobre Economia, mas através da ótica da acumulação e não apenas da inclusão. Sobre vinhos, sapatos, viagens internacionais. Mas, normalmente, são pessoas brancas que fornecem esse tipo de depoimento. A Ana Paula Lisboa, que também é colunista do Globo, tem uma afirmação parecida. “Poxa eu gostaria de escrever sobre qualquer coisa”. No entanto, pela falta de diversidade, a gente acaba se cobrando, nos imputando uma obrigatoriedade que é nossa. Quem mais vai falar sobre isso?

 

 

 

“Como é que nós estamos entre as 10 maiores economias de mundo e somos o octagésimo lugar em índices de desenvolvimento humano? Como é que temos uma das mais amplas e sofisticadas redes de serviços do mundo, mas temos ao mesmo tempo uma das maiores populações de desempregados do planeta? O racismo explica tudo isso, porque quase todos os pobres são pretos”.

(Flávia Oliveira)

 

 

 

Quem é seu economista favorito? E por que?

Eu não tenho necessariamente um economista favorito. Na Economia você se adequa a algumas correntes de pensamento. Temos os monetaristas e os desenvolvimentistas. Se eu tiver de me inserir em um desses grupos sou mais desenvolvimentista, ou seja, pertenço a escola de (Jonh Maynard) Keynes[3], que tratou muito sobre as modelos de criação de trabalho. Na América Latina você vai cair muito nos cepalinos[4], onde Celso Furtado é um grande ícone. Ou seja, eu naturalmente sigo mais essa linha do que a dos economistas mais ortodoxos. Mas sendo uma jornalista de economia isso faz uma diferença. Eu tenho que ler muito sobre Economia, mas nun sentido muito objetivo, sobre decisões a serem tomadas pelas equipes econômicas, quais tendências e processos vão se desenvolver a partir dessas decisões. Evito me apaixonar por uma alguma linha que possa ser ideologicamemmte mais identificável. O Bolsa Família, por exemplo, foi uma grande engenharia de política social do Brasil. Mas o programa demorou a incorporar os jovens. Eu prefiro ser mais crítica a políticas públicas pela sua insuficiência de alcance. Eu sou muito entusiasmada pela política de cotas, mas em que medida isso transbordou para se criar oportunidades de inserção no mercado de trabalho? Muitos jovens e adultos negras e negros periféricos se graduaram na universidade, mas não conseguiram bons empregos com boas remunerações. Mesmo favorável a essas medidas eu enxergo deficiências, mas como jornalista eu preciso obter um olhar crítico mesmo em cima de coisas das quais concordo. Ainda que simpatizando com algumas visões ou modelos econômicos.   

 

O que a Economia pode nos ensinar sobre o racismo de um país?

Se você pensar na desigualdade econômica, de renda, de acesso ao trabalho, de bem estar, já começo a problematizar a partir daí. Você tem um sistema que privilegia determinados grupos em detrimentos de muitos. A estruruta econômica serve apenas a uma parcela da população. Ela está a serviço da manutenção das desigualdades. Quem tem saneamento básico, coleta regular de lixo, acesso a água potável, energia elétrica? Em territórios onde nada disso existe, fica evidente que se tratam de indicadores que compõem um contexto de racismo ambiental desses lugares. Pobreza hoje em dia não é apenas viver com um ¼ do salário mínimo. Trata-se não apenas sobre perda ou insuficiência de renda, mas um montante de processos de deteriorização do estado de bem estar social. São as chamadas variáveis da pobreza multidimensional. Você pode ganhar R$ 5 mil reais por mês e morar na Rocinha. Se na sua rua não tiver a regularidade desses serviços que eu te falei a pouco, você está inserido numa dimensão de pobreza que tem consequências sobre a sua saúde e a da sua família. Não ter laje ou ter uma parede repleta de infiltrações, a habitação ser de reboco, pau a pique, também são fatores multidimensionais de pobreza pela ótica da Economia. Tudo isso tem a ver com racismo e privilégio de classe. Eu me faço uma pergunta quase que diariamente e acho uma vergonha jornalistas de economia não questionarem isso com mais intensidade. Como é que nós estamos entre as 10 maiores economias de mundo e somos o octagésimo lugar em índices de desenvolvimento humano? Como é que temos um das mais amplas e sofisticadas redes de serviços do mundo, mas temos ao mesmo tempo uma das maiores populações de desempregados do planeta? O racismo explica tudo isso, porque quase todos os pobres são pretos.  

   

Em 2016 e 2018 você escreveu duas colunas, uma em cada ano, e de formas diferentes, sobre a importância dos Direitos Humanos, mas de forma que eles não estivessem atrelados a nenhuma ideologia político-partidária. Com isso, você acha que chegamos àquele patamar mais temido da História, de que agora precisamos explicar o óbvio?

Acho. Infelizmente, até por uma questão de dificuldade de construção de narrativa ou de arrogância dos governos de esquerda quando chegaram ao poder. Parecia que tudo estava assegurado. Os movimentos sociais deram uma cochilada, mapeamos de forma insuficiente as insatisfações dos grupos que estavam perdendo ou estavam se sentindo ameaçados de perder seus privilégios, sobretudo o homem branco, hétero e de classe média. Esses grupos não conseguiram absorver que a redução das desigualdades seria bom para todos. Enquanto se construía a narrativa deles, parte dela se alimentou da criminalização dos Direitos Humanos, da violência urbana, que foi negligenciada pelos governos de esquerda. O Brasil chegou ao goveno Temer já tendo a terceira maior população carcerária do mundo. Todos os presidentes anteriores têm a sua parcela de culpa. Ninguém mexeu nessa estrutura. Nós estamos, há décadas, entre os campeões mundiais de homicídios. Um jovem negro e periférico no Brasil é assassinado a cada 23 minutos. Isso foi permitido tanto pela esquerda tanto pela direita. E não só os Direitos Humanos. Houve um glossário que foi marginalizado. Feminismo, machismo, antirracista, antimachista, igualdade de gênero. Até meio ambiente foi! Eu, como jornalista, tento desideologizar algumas dessa expressões ou tentar encontrar outras. Por exemplo, alguns movimentos utilizam a expressão “bem viver” em substituição a igualdade racial. A declaração universal dos Direitos Humanos tem uns 30 artigos. Um deles fala sobre moradia e é um assunto que interessa a candomblecistas, evangélicos, gays, héteros... Artigos que falam sobre o direito ao lazer, mobilidade, direito de ir e vir. De ter acesso democrático à informação, de ter acesso a tecnologia, de ter o direito a livre manifestação de pensamento e não ter de levar uma bala de borracha no olho por causa disso ou de ser sufocado por gás lacrimogêneo. Que falam sobre Educação, do direito de você ter uma biblioteca no seu bairro. Tudo são Direitos Humanos, mas esse pessoal só taxa os defensores de Direitos Humanos como sendo defensores de bandidos.

 

Você tem uma história bem interessante que envolve uma ligação com Mãe Beata de Iemanjá, uma importante militante pelos Direitos Humanos na Baixada Fluminense. Queria que você explicasse, por favor.  

Minha mãe faleceu em 2011 e foi um pouco traumático pra mim, pois ela morreu subitamente. Caiu morta em casa e a encontrei. Foi um enfarto fulminante. Foi um baque porque eu pensei que fosse cuidar da minha mãe, acompanhar a velhice dela. Em 2015, eu vi uma entrevista no programa “Espelho”, do Lázaro Ramos, no canal Brasil, com Mãe Beata de Iemanjá. E eu achei ela muito parecida com minha mãe. No dia seguinte, tinha uma festa no Vivo Rio onde seria realizado o prêmio Camélias da Liberdade, que o CEAP (Centro de Articulação de Populações Marginalizadas), do Ivanir dos Santos, promovia em função do reconhecimento de militantes negros. A Dandara Tinoco, que trabalhou como repórter na minha coluna de economia do Globo, de quem sou muito amiga, fez uma série de reportagens sobre intolerância religiosa sob a perspectiva da perseguição às religiões de matriz africana. Ela ia ganhar um dos prêmios e fui lá prestigiá-la. Chegando lá, estava Mãe Beata, que também ia receber um prêmio, acompanhada de Lúcia Xavier, da ONG Criola. Aí pensei: vou ter de falar com ela. Me apresentei, me ajoelhei do lado dela pra conversar melhor, citei a entrevista com o Lázaro e a semelhança dela com minha mãe. Disse que ela era de Cachoeira, uma cidadezinha lá do inteiror da Bahia, também terra natal de Mãe Beata. Ela perguntou qual era o nome de minha mãe. E respondi que era Ana Lúcia, mas era conhecida como Lucinha. Disse que não lembrava. Aí retruquei dizendo que talvez ela conhecesse meu avô, que era ferreiro na cidade e o apelido dele era Pitú. Quando disse o apelido dele, os olhos dela se encheram de lágrimas. E ela disse “tio Pitú”, ou seja ele era primo da minha mãe. O meu avô era primo de primeiro grau da mãe de Mãe Beata, sendo prima de segundo grau da minha mãe. Somos de núcleos familiares distintos, mas ainda assim éramos parentes. Nós duas começamos a chorar muito. Aí ela chamou o babalorixá Adailton Moreira, que é filho dela e ela falou assim pra ele: “conheça sua prima” (risos). Foi um dos encontros mais emocionantes que tive na minha vida. Ela me incorporou a sua família, embora eu seja de outro terreiro, comecei a fazer várias visitas a ela, levei minha filha pra conhecer Mãe Beata. Conversávamos no chão, eu ouvindo suas histórias. Ela contava os seus causos com o dedo em riste como minha mãe fazia...e ela gostava de declamar poesias como a minha fazia! A minha filha se impressionou com a semelhança desse comportamento e também começou a chorar sobre como aquela ancestralidade que começou a se apresentar pra gente. Ela quase passou o Natal aqui com a gente, não pôde ir por problemas de saúde. O último dia das mães passamos juntas. Dez dias depois ela faleceu também de infarto fulminante. Foi uma segunda mãe que encontrei. Convivi muito intensamente com ela.        

 

 

[1] O Ato Institucional nº 5 foi um decreto emitido pelo “Comando Supremo da Revolução” – que é o nome que a cúpula da ditadura militar (1964-1985) dava a si mesma – e assinado pelo general Artur da Costa e Silva, em 13 de dezembro de 1968. Por meio dele, os militares atribuíram para si poderes de exceção, abrindo um período de repressão política marcado pela perseguição a adversários políticos, prisão, tortura, execuções e censura à imprensa e às artes.

[2] reclamação fútil e de fácil resolução, típica das classes mais abastadas economicamente da sociedade

[3] Economista britânico (1883-1946), cujas ideias mudaram fundamentalmente a teoria e prática da macroeconomia, bem como as políticas econômicas instituídas pelos governos. Keynes defendeu uma política econômica de estado intervencionista, através da qual os governos usariam medidas fiscais e monetárias para mitigar os efeitos adversos dos ciclos econômicos.

[4] Referência aos integrantes da CEPAL – Comissão Econômica para os Países da América Latina e Caribe, entidade criada pela ONU em 1948 para desenvolver estudos sobre a economia de países emergentes como o Brasil. Um de seus mais notórios membros foi o brasileiro Celso Furtado, que fez significativas contribuições por meio da teoria estruturalista, que visava uma reforma no modelo com o qual os países periféricos tentavam se industrializar. Desse modo o conceito de subdesenvolvimento vinha a tona ao explicar a industrialização tardia desses países.