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15 de dezembro

Entrevista do mês: Jefferson Barbosa

“Ser jovem da periferia é resistir a sua existência”

O ativista e estudante de jornalismo de Duque de Caxias, de apenas 21 anos, analisa o engajamento da juventude na política e diz que é preciso abandonar as polaridades partidárias. Segundo ele, nem Marx, nem Bolsonaro são as soluções.     

 

Jefferson Barbosa veio da Paraíba, mas vive no Rio desde os 4 anos. A família morou na Taquara, zona oeste do Rio, numa comunidade chamada Chico City, e depois habitou a região conhecida como Pantanal, no segundo distrito de Duque de Caxias, onde mora desde os 14 anos. Hoje é estudante de comunicação da PUC. Em 2015, aos 17 anos, ajudou a construir significativos trabalhos de base contra a redução da maioridade penal, os rolezinhos. Filiado ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), é editor de um dos veículos mais combatentes da região, o Voz da Baixada, e integra o coletivo Movimentos, grupo de discussão formado por jovens da periferia para debater a política de guerra às drogas. Leia a conversa: 

 

Entrevista a Fabio Leon

 

Você ser filho de imigrantes nordestinos e ter vivido de forma muito humilde impactou a sua vida de que forma? Como essa experiência te moldou politicamente?

 

Nunca tive essa consciência política. Só quando passei a tocar o Voz da Baixada é que as coisas foram surgindo. Ser imigrante sempre foi super normal. Boa parte da minha família veio do Nordeste para vir morar aqui ou em São Paulo e sempre na periferia dessas cidades. Aqui no Rio tenho parentes na Mangueira, na Baixada. Em São Paulo, na região de Osasco. Acho que ao perceber que são as necessidades que nos forçam a morar em alguns lugares e não as escolhas que temos faz com que eu comece a pensar na minha formação política. Por que temos de sair dos nossos lugares para ir para outros que são considerados mais “dignos”, com mais “qualidade” de vida? Hoje eu acho que as pessoas precisam ter essa dignidade e essa qualidade sem precisar se preocupar em se mudar do lugar de onde vivem.

 

Você teve alguma sensação de não pertencimento, de culturalmente você estar à margem?...

 

...(interrompe) Nunca tive isso. Desde os meus 11, 12 anos nunca mais voltei pra Paraíba. Essa viagem nunca fez parte da minha infância. Até porque, tanto na Baixada quanto na Mangueira, o perfil (cultural) é muito próximo do meu perfil de origem. Que é de nordestinos pobres que vêm ao Rio e se estabelecem em periferias e favelas. De onde se mantêm no mesmo tipo de vida de onde vieram, até tentar buscar o crescimento financeiro. Aí você passa nos lugares e o pessoal te chama de “Paraíba”. Mas é Paraíba da onde? Do Ceará, de João Pessoa? Então nunca senti falta desse Nordeste. Em cada esquina ou bodega toca um forró, um arrocha. O que estava acontecendo nesses lugares era o que estava acontecendo na Paraíba. Então nunca senti falta.

 

O que é ser jovem na Baixada Fluminense hoje na sua opinião?

 

Ser jovem já não é uma tarefa muito fácil. Mas ser jovem na Baixada torna as coisas mais difíceis. A Baixada não é um lugar humanamente tranquilo. Você está lidando com conflitos, mudanças radicais. Você sai do lugar passivo da infância e passa a ser protagonista do lugar onde se vive. Ser jovem é estar dentro de uma realidade cruel, que não te impõe perspectiva nenhuma sobre você querer ser melhor do que aquilo que determinado tipo de vida é planejado pra você. É lutar pra não ser catador de papelão, ser auxiliar de serviços gerais, ou trabalhar em algum bico para seu padrasto. Você não tem a perspectiva de entrar em uma universidade, de trabalhar de carteira assinada, de ganhar mais do que um salário mínimo. Nada disso é real. Por que você vai querer ser mais do que os outros? Se isso acontecer você vai ser o metido a besta e não vai ser um sonhador. Você tem que resistir a sua existência, mesmo não sendo militante. Eu li um texto da Ana Paula Lisboa, uma pesquisadora da Maré, que diz que se você conseguir ser feliz, vivendo minimamente bem e sendo um jovem de periferia, de favela, já é um ato revolucionário. Dada a realidade desigual que se vê ao redor e devido a nossa sociedade que é racista, classista, que possui o seu apartheid simbólico. Que nos obriga a consumir. A gente tem que pensar no agora porque não há muitos planos para o futuro. Você precisa pensar como vai ao trabalho, como vai a entrevista de emprego, se tem dinheiro da passagem, se tem uma roupa adequada pra ir a essa entrevista. O jovem só quer ter direito à vida, a uma vida plena. E o jovem, além de tudo isso o que falei é ansioso pra cacete! (risos)

 

Existe a percepção de que a juventude está mais engajada politicamente. Mas imersa a uma dicotomia, tanto à direita como à esquerda. Na sua opinião, essa polaridade é saudável?

 

Primeiro, eu acho ultrapassada essa ideia. De haver apenas uma direita e uma esquerda e não ter pessoas que se interessam por política. O jovem tem interesse por política, mas nem tanto por ideologia. Quando você vê esses grupos como MBL (Movimento Brasil Livre), o PT, o PSOL, se debatendo, estão apenas disputando uma narrativa.  Não acho isso errado, mas isso não agrega mais pessoas. O MBL consegue ter a capacidade de distorcer essa disputa de narrativa. As pessoas acham que os jovens têm uma tendência natural de serem de esquerda. Por ansiarem a liberdade e coisas assim. Mas isso é uma lógica muito movida pela classe média, tem muito do perfil do colonizador nisso. Eu baseio minhas palavras olhando o meu irmão que é mais novo do que eu, o pessoal que cursou o ensino médio comigo, a galera da igreja, da minha turma na PUC. É um pessoal que não tem um lado político. Não são de esquerda. Eles querem ter uma roupa para o baile no final de semana, uma boa roupa pra vigília, ir à festa na boate. Eles querem curtir a vida. Até porque a noção que temos de direita e esquerda nunca se aproxima do Centro. Por mais que a gente esteja dentro de um processo político, por mais que a gente seja inovador e criativo na política, é preciso superar essa lógica de direita e esquerda e partir para uma reconstrução da política. Esses novos grupos que surgem, o MBL, o Movimentos o Coletivo Papo Reto, o Voz da Baixada, todos eles querem propor inovações, querem uma nova forma de se fazer política que fuja do tradicional, mas não acham que sejam ligados a essa polaridade. Mas também não acham que eles devam ignorar a história, de quem construiu essas bases políticas. Os partidos, se prendendo na ideia de direita e esquerda, acabam perdendo o que eles têm de particular ou original. Não se pode ficar preso somente a Marx ou Bolsonaro. Eu acho que o correto é dizer que estamos numa disputa entre o campo progressista e um campo conservador, aquele que tem medo de mudanças, sejam elas pequenas ou grandes.

 

Embora tenhamos acabado de falar sobre a possibilidade de inexistência dessa tal direita e esquerda, você pertence a um partido político que tem a ideologia socialista em sua construção e parece estar demonstrado certa ascensão entre os jovens. Como é seu cotidiano efetivo, dentro desse partido, na proposição de ideias que possam, por exemplo, reverter em políticas públicas para a juventude?

 

Dentro do partido do qual sou filiado, eu tenho pouca militância partidária. Não milito nem dentro, nem fora dele. A minha construção é muito mais por identificação. Mas não tenho militância, nem sou preso a nenhuma corrente, acho isso um saco (risos). Acho uma perda de tempo. Respeito, mas acho uma perda de tempo. A disputa tem que se dar na sociedade e não no campo interno. E nem acho que o partido é uma ferramenta importante pra disputa eleitoral. O partido tem pouca voz na sociedade. Eu tenho muito mais voz no jornal que produzo ou no Movimentos. Até porque lá dentro, as pessoas não conseguem se ouvir, dialogar. Isso não é uma exclusividade do partido a qual pertenço.

 

Mas por que isso está acontecendo?

 

Porque ele está inserido dentro de um sistema que não é novo. É um sistema que foi criado pelo PT, pelo PSDB, enfim pelos velhos partidos. Se você quer funcionar dentro dessa engrenagem, precisa se encaixar em algum lugar. Eu discordo de quase tudo o que envolve o atual modelo político que existe hoje. As pessoas se filiam, se tornam candidatos, se disputam internamente pra depois disputar o campo público a partir da campanha eleitoral. Por mais que seja difícil e desconfortável abrir mão desse modelo (de sistema político), evoluir pra outra coisa não condiz mais com a realidade que a gente vive. Até porque os modelos de participação são outros, o tempo todo surgem novas ferramentas, outras maneiras de fazer política. No partido, não consigo ter espaço para debater a sociedade. Existem as correntes e elas são discordantes entre si. Aí precisa ter um trabalho de articulação que pra mim é esgotante. Eu não escuto o partido, eu escuto narrativas. Mas por outro lado, se tem uma campanha da qual eu me identifique, isso se destoa de todo o resto do partido. É um novo horizonte que surge. Sou próximo de algumas candidaturas das quais participo através de articulações, converso com as equipes desses candidatos, mas de maneira independente.   

      

Você é estudante de jornalismo, uma profissão elitista, branca, burguesa por excelência, mas é através dele que faz o seu trabalho de militância e, com isso, desaparece aquela impressão de paradoxo não?

 

A minha relação com o jornalismo começa com o Voz da Baixada, apesar de que, no início de tudo eu queria, na verdade, era ser arquiteto. Acho que todo mundo tem história pra ser contada. Quando você não conhece as histórias do seu lugar, da sua família e tem dificuldade em se criar uma identidade própria, de se entender no mundo, o jornalismo meio que cumpre esse papel. Quando montei o jornal eu queria conhecer as histórias positivas da Baixada Fluminense, um outro olhar que não fosse da violência, da falta de saneamento básico, etc. Eu sei qual é a verdade de determinados lugares. Ela é cruel, mas também pode ser doce. Esses lugares também podem ter esperança, transformação, projetos, sonhos, empreendedorismo. São lugares que têm lodo, mas desse lodo sai o adubo pra alimentar as flores. Acho que se optei por estudar jornalismo, justamente num momento em que não há projeção muito positiva em termos de prospecção no mercado, é porque nesse modelo eu não acredito mais. Se você opta por estudar jornalismo agora precisa ser criativo, não apenas no modelo de narrativas, mas também no de negócios. Porém, acho que o que prevalece é o elemento de transformação. Não ser apenas um narrador, mas apostar que você pode fazer algo de verdade.  

 

Você e um grupo de jovens de territórios periféricos fundaram a plataforma Movimentos, em setembro do ano passado na Maré, que pretender fazer diversas discussões como política de drogas, racismo, e tudo o mais que tenha relação com a violência. Esse trabalho vem sendo desenvolvido na Baixada?

 

O Movimentos é um grupo de jovens de várias periferias, principalmente do Rio de Janeiro, mas também de jovens de outras partes do Brasil. A ideia é que o grupo debata a política de drogas em nível nacional. E quando falamos de política de drogas nós falamos de racismo, de economia, de redução de danos, uma série de coisas. E tudo isso acaba ecoando na Baixada, impactando vários territórios que são dominados por milícias e pelo tráfico. Mas não trabalhamos com um território específico. Entretanto, vamos ter um encontro nacional com cerca de 40 jovens que vão lançar outros olhares sobre essa questão. Queremos qualificar essa discussão. Feito isso queremos propor bandeiras mais sólidas em termos de políticas públicas. Quer seja pela Justiça, pela disputa de narrativas na mídia, etc. Queremos fazer debates nas escolas, nas igrejas católicas e evangélicas. Assim como não há um recorte específico pra Baixada, não há um recorte específico para nenhuma comunidade. Dentro de nossas limitações, estamos tentando fazer essas agendas. E pensando em várias parcerias possíveis como o FÓRUM GRITA BAIXADA, o Mate com Angú, Galpão Golmeia. Para que haja sustentabilidade para essa disputa pelo Centro.  

 

Você também participou do coletivo Amanhecer contra a Redução que serviu para levar informações à população sobre a proposta de redução da maioridade penal que, ao contrário do que prometia o projeto de lei na época, aprovado pela Comissão Especial da Câmara, só prenderia a população preta, pobre e favelada. Daí parte-se para uma estratégia de ocupações de espaços públicos privilegiados, como shopping centers, que ficaram conhecidos como os rolezinhos. Como foi essa experiência?

 

Isso foi em 2015. Eu tinha acabado de completar o ensino médio, nem estava concentrado para o vestibular ainda. Tava com 17 anos na época quando a PEC (Proposta de Emenda constitucional) 171 estava prestes a ser aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Isso acendeu um alerta para essa galera mais progressista de jovens. E me chamaram para discutir de que forma poderíamos atuar em relação a isso. Eu era a única pessoa de periferia dentro do Amanhecer, já que todos ali eram de classe média branca. Pra mim, essa PEC seria muito mais impactante. Então montamos vários eventos, festivais, sarais, debates. Em um desses debates, eu sinalizei que era necessário sair dessa bolha Zona Sul-Zona Norte, e trazer essa discussão para onde vivia, que era a Baixada, e de onde sairia a população diretamente mais afetada por essa política. O problema era: como vamos trazer uma dimensão mais humana a esse debate? Foi aí que veio a ideia de se fazer os rolezinhos. Em princípio, a ideia era de se fazer em uma praia, mas depois pensamos em fazer no shopping Leblon que é onde está a elite da elite.

 

O que aconteceu quando vocês chegaram lá?

Pegamos um ônibus, acho que juntamos uns 50 jovens. Tínhamos muito medo de como isso iria impactar a galera que não estava acostumado àquilo. Foi um tanto estranho, pois primeiro quem entrou foi o grupo de jovens da classe média que eram ligados ao Amanhecer, pra não assustar tanto. Depois, eles fizeram tipo um círculo de proteção e ficamos no meio. Todo mundo já tinha no bolso um ingresso pra assistir a uma sessão de cinema. Nem pesquisamos qual filme seria. O filme era bem ruim, nem tinha dublagem (risos). Mas aquele ingresso passou a ser o nosso passaporte. Era o que me autorizava a entrar naquele espaço. “Não sou um moleque que vai te fazer mal, eu só vim curtir o shopping como você”. Era a nossa garantia para permanecermos dentro do shopping, para não sermos expulsos. Não fomos, em nenhum momento, incomodados por causa disso. Mas os seguranças nos acompanharam o tempo todo. Estávamos incomodando aquelas pessoas. Foi uma mistura de medo e estranhamento, mas sem qualquer interação com quem estava lá dentro. Ali começamos a puxar palavras de ordem contra a redução da maioridade penal, explicamos que a grande maioria de jovens é presa por causa de pequenos delitos e não por causa de assassinatos ou estupros, por exemplo. Foi um ato político acima de tudo, mas foi engraçado ver a cara de espanto das pessoas.