01 de agosto de 2023 

Entrevista do mês: Laís Dantas

“QUE SEJA NATURAL PESSOAS COMO EU GANHANDO VISIBILIDADE”  

Conversamos com a cineasta baixadense Laís Dantas, diretora do documentário “Desova”. Filme é uma produção da Quiprocó Filmes e apresentado por Fórum Grita Baixada e Observatório Fluminense, da UFRRJ.

 

O documentário “Desova”, da Quiprocó Filmes, recebeu, no final de maio, o Prêmio de Melhor Filme na Competição Oficial Internacional de Curtas-metragens do 12º Festival Internacional de Cine Político - FICIP, em Buenos Aires, na Argentina. O curta, dirigido e roteirizado por Laís Dantas, aborda o desaparecimento forçado de pessoas na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, mostrando principalmente os atravessamentos e consequências nas vidas das mães que perderam seus filhos.

 

“Desova” foi viabilizado por meio de uma emenda parlamentar de 2020, de autoria do deputado federal Marcelo Freixo, que não só possibilitou a realização do filme, mas também a realização de uma pesquisa sobre o assunto, intitulada “Mapeamento exploratório sobre desaparecidos e desaparecimentos forçados em municípios da Baixada Fluminense”, conduzida por pesquisadores da UFRRJ, a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e do Fórum Grita Baixada (FGB). Ambas as instituições apresentam o curta-metragem. O filme conta ainda com o apoio da Fundação Heinrich Böll.

 

O filme busca compreender as dinâmicas do desaparecimento forçado de pessoas, que incluem técnicas criadas e desenvolvidas pelo Estado e seus agentes para desaparecer corpos, bem como a tentativa de mães e familiares das vítimas em lidar com esse trauma, por meio da criação de grupos e coletivos de apoio. 

 

Além do conteúdo que prioriza uma narrativa onde o foco são as denúncias de graves violações de direitos humanos sofridas por populações negras, pobres e periféricas, “Desova” também é um pequeno exercício estético sobre vida, fluidez, leveza, luto e tentativas de superação através da fé, que se embaralham com os relatos doídos de quem sofre cotidianamente com a perversidade de se conviver com lutos não consumados. Apenas sentidos em função de uma ausência produzida e imposta pelo Estado.     

 

Entrevista a Fabio Leon 

 

Faça um resumo da sua trajetória como profissional do audiovisual. Como esse caminho foi pavimentado? 

Eu sou Laís Dantas, tenho 28 anos, sou cria da Baixada Fluminense. Minha trajetória de audiovisual vem muito do meu início da faculdade. Eu estudei na Unigranrio, fiz publicidade e propaganda lá. E nessa onda de desbravar a Baixada fui levada pra conhecer o Cineclube Mate com Angu, em Duque de Caxias, através do meu professor, Arthur William; sou muito grata a ele. Na época eu trabalhava na TV da faculdade. Primeiro como voluntária, depois virei estagiária. E ao conhecer o Mate, conheci o Heraldo HB e a galera toda. E fiquei encantada com o que acontecia. Então, eu falava pra minha mãe que ficava até tarde pra fazer um trabalho da faculdade, mas eu ia pro Mate para aprender mais. E aí eu mergulhei no conceito de cinema de guerrilha, dessa coisa de “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Eu comecei a ver possibilidades ali no meu território, que eu achava até então que não era possível. Sou muito grata ao Mate e ao meu território… por me mostrar possibilidades de criar e de desbravar o audiovisual.

 

Como a Quiprocó Filmes, que é a produtora do documentário, se aproximou de você? Como o documentário foi planejado inicialmente? 

Conheci a Quiprocó através da Casa Fluminense e aí a gente começou uma parceria de trabalho. Eu acho que isso foi em 2017 e a gente começou a fazer um trabalho muito legal. O Fernando (Sousa) e o Gabriel (Barbosa, ambos sócios-proprietários da produtora)  sempre me deram muita abertura pra opinar e criar junto com eles. Eu editava e operava a câmera com eles, dava sugestões criativas. Eu sou muito grata a eles pelos trampos que a gente pegou e pelas oportunidades que eles me deram, de crescimento, pra dirigir a fotografia do  documentário Rio Negro. Eles sempre me mostraram os processos e as possibilidades do cinema e do audiovisual. O Desova me chega numa linha de leveza. O documentário “Nossos Mortos Têm Voz” (produzido pela Quiprocó Filmes e apresentado pelo Fórum Grita Baixada e Centro de Direitos Humanos de Nova Iguaçu) segue uma linha um pouquinho mais pesada e eles queriam trazer pro Desova algo mais leve sobre o assunto. Eu sempre, no início da minha trajetória, fiz vídeos mais poéticos. Eu gosto muito dessa linha narrativa um pouco não linear. Filmando minha rua, minha mãe, os lugares onde eu fui, sempre fazendo muita poesia através disso. Então eles sempre me viram com esse olhar mais poético. 

 

“Desova” conquistou o prêmio de Melhor Filme na Competição Oficial Internacional de Curtas-metragens do 12º Festival Internacional de Cine Político (Ficip), na Argentina. O que essa conquista representou pra você e como você avalia as repercussões dessa premiação?

Ter ganhado o Ficip como o melhor curta nacional foi muito importante pra minha carreira. Eu me lembro de ter ficado meio confusa com meus sentimentos. Eu não sabia se eu ficava feliz ou triste porque é um tema muito pesado, né?  Mas eu acho que os jurados entenderam a proposta do filme, a sua linha narrativa . Isso também me deixou muito feliz porque apesar do tema ser bem pesado, o documentário  foi bem construído. É um tema importante e que precisa ser falado. Ganhar esse prêmio na Argentina, concorrendo com outros filmes de mesma temática, sendo minha primeira viagem internacional, o primeiro festival do Desova...então tem uma beleza nisso tudo. Tem um uma importância nesse processo todo. E tem o fato de que eu que sou cria da Baixada Fluminense, mulher, preta, lésbica. Cresci na Baixada Fluminense ouvindo casos assim, mas nunca entendendo o que realmente se tratava. Não é um tema que não fazia parte do meu imaginário quando eu era criança. Não é um tema longe assim do que era a minha realidade.  Foi muito massa ver a repercussão da premiação. Eu acho que pra além do prêmio, as pessoas começaram a olhar pro tema, muitos amigos vieram me perguntar sobre o que tratava, quando iria estrear. E as matérias vinham também trazendo relatos sobre a temática do desaparecimento forçado. Me ver no jornal também foi bem bonito, minha mãe ficou bem emocionada. É muito importante ver uma mulher negra como eu conquistando prêmios internacionais e que isso seja naturalizado. Que seja natural pessoas como eu ganhando visibilidade. 

 

A cena do enterro do segundo filho de uma mãe, ambos vítimas de assassinato, que abre o documentário, é bem impactante. Há uma nítida sensação de fortaleza, embora misturada a tanta dor. Esse contraste traduz de forma adequada o cotidiano de preservação de saúde emocional e mental dessas famílias em função da crueldade que são os desaparecimentos forçados?  

Essas mães são fortalezas, são mulheres muito fortes. A Jô (uma das mães entrevistadas para o documentário) ainda estava ali enterrando seu filho, dando fim a um ciclo. A gente encontrou diversas outras mães que não enterraram seus filhos. Você consegue ver no semblante delas que é um mix de dor e força muito absurdo que eu não conseguiria descrever em palavras aqui. O natural, ao imaginar e lidar com uma situação como essa, seria fazer o exercício de se colocar no lugar do outro. Mas não tem como se colocar no lugar dessas mães.  É um sentimento que dividi com o Fernando e o Gabriel que parece que é um buraco sem fundo. Não tem onde pisar e tatear. É sobre uma ausência perversa do corpo. Eu vi relatos de mães falando que estavam andando na rua e viam um menino muito parecido com o filho que tinham perdido. Imagina viver com essa incerteza e esse pesar! Não encerrar o ciclo também causa uma certa angústia e aí tem que viver para dar conta de muita coisa, ainda tem o restante da família pra cuidar. 

 

O documentário também reforça a solidão e a união de uma rede de mães e mulheres em torno do luto, além da necessidade de se criar iniciativas, muitas vezes vindas delas mesmas, de investigação sobre o paradeiro de seus parentes desaparecidos. Entretanto, o que impressiona é que essas informações e narrativas, apesar da gravidade de suas implicações, são transmitidas com certa leveza. Há também as imagens de rios sobrepostas aos depoimentos dos entrevistados que transmitem uma dualidade sobre a finitude em função da morte, mas de recomeço, por transbordarem aspectos da vida, como um simples banho em família. Como você chegou a essa solução estética? 

Foi intencional. Eu não queria mostrar, revelar o rosto dessas mães, o nome delas. Queria que ficasse nesse anonimato mesmo. Não um anonimato no sentido de apagamento, mas para trazer uma certa leveza nesse lugar que é tão duro para com essas mães. Foi uma forma de trazer os cemitérios aquáticos. Mas também tem esse aspecto da água, da sua fluidez e para além do imaginário de um cemitério aquático. A criança que aparece se banhando simboliza nada mais, nada menos que essas vítimas. Mas de um jeito muito sutil, porque essas pessoas  tinham um endereço. Elas tinham mãe, que as gerou, que sonhou com elas, planejou, cuidou delas por muito tempo. Porque parece, no desaparecimento, que o corpo não tem valor. Parece que esse corpo não tem família. Então, essa coisa de trazer a fluidez da água que leva, que lava, essa água que banha esse imaginário, significa também: “Olha que bonito essa família, essa mãe, com essa criança, brincando na água”.Essa água é um momento de diversão, é um imaginário poético, lúdico da maternidade. Acho que tem uma coisa também da leveza das mães, como foi dito anteriormente. A arteterapia é um momento muito delas e elas estão muito ali concentradas, elas desenham, estão muito entregues. Mas também são mulheres que precisam de cuidados, de atividades que, às vezes, elas mesmas se propõem entre elas.Essas mulheres precisam de apoio, sabe? E elas estão ali juntas, desenhando e elas riem e parece que não tem problema, que são elas ali, relembrando a infância, desenhando no papel.É muito bonito vê-las ali juntas e se acolhendo. Umas têm um pouco de dificuldade de falar e outras falam mais que outras. Mas elas estão ali juntas, separaram um tempo para estar ali. 

 

Você utiliza representantes de algumas religiões para falar da morte sob o ponto de vista da transcendentalidade. Como você interpreta a fé enquanto processo de superação de traumas e tragédias pessoais? 

É um dos pilares do filme. Eu tentei trazer alguns elementos em que as mães se ancoram, ainda mais falando da Baixada Fluminense e do Brasil. As pessoas recorrem muito à igreja, aos santos, aos centros espíritas. Seja qual for a vertente, as pessoas costumam recorrer muito à fé e à religião pra superar alguns traumas. Tem muito essa coisa das pessoas recorrerem ao sagrado e se perguntarem: “por que isso está acontecendo, por que Deus deixa isso acontecer comigo?” Então eu tento trazer uma linha mais conceitual do que cada vertente vai dizer sobre a perda.