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05 de dezembro de 2019

Entrevista do mês: Lu Ain Zaila, escritora

Afrofuturismo: uma pequena palavra e uma grande complexidade cultural para a negritude

 

O Afrofuturismo é um gênero da cultura que vem renovando suas forças nos últimos anos. Em filmes ou livros, seus protagonistas sofrem algum tipo de marginalização e mudanças radicais para sobreviver. São minorias, cujos antecedentes históricos já os tornam íntimos com a violação brutal e exploração de sociedades opressoras. O termo foi cunhado pelo crítico literário norte-americano Mark Dery numa entrevista com os autores afroamericanos Tricia Rose, Samuel Delany e Greg Tate para descrever "a ficção especulativa que trata de temas afro-americanos e lida com preocupações afro-americanas no contexto da tecnocultura do século XX”. 

 

Ao perceber que havia espaço para uma literatura de ficção especulativa assentada em todo um contexto negro (África e diáspora), Luciene Marcelino Ernesto, mais conhecida como a autora Lu Ain-Zaila vem dedicando tempo e estudos para materializar a sua arte. Formada em Pedagogia/UERJ ela já escreveu a Duologia “Brasil 2408”, que se divide nos livros “(In)Verdades” e “(R)Evolução” que são frutos de autopublicação, depois “Sankofia”, uma coletânea de contos que tomou forma via financiamento coletivo. E a terceira publicação, a novela cyberfunk “Ìségún”, que é uma parceria com a Monomito Editorial. 

 

Sobre o Afrofuturismo, assim ela o descreve em seu blog: “Essa pequena palavrinha esconde uma complexidade enorme, mas vamos simplificar por ora. Tem a ver com a presença de pessoas negras em lugar de protagonismo, não apenas fisicamente, mas cultural e musicalmente. Esse é um movimento artístico e estético que se expande por vários níveis, indo da pintura e arte experimental ao cinema, e na literatura. Nós queremos que nossas faces também salvem o dia, a humanidade, o universo, ou que apenas vivam um romance ou contêm uma história engraçada. Mas sempre com um viés consciente de seu lugar no mundo, em algum nível."

 

Nascida e criada em Nova Iguaçu, ela afirma que a literatura, ainda é tratada como algo menor e assim acaba fazendo muito pouco pelo jovem, infelizmente. “São livros que eles são obrigados a ler e não estão de acordo com sua faixa etária, não os espelha ou fala como eles, mas há um vento de mudança vindo, dia após dia", afirma. Cria dos pré-vestibulares comunitários, onde teve um primeiro contato com literaturas marginalizadas, tempos depois virou professora de Geografia Política e História em Austin, Queimados e Nova Iguaçu. Na época, já estava em ampla discussão as políticas de ações afirmativas para a inclusão de negros nas universidades. Os caminhos fizeram com que participasse de reuniões sobre o assunto. Foi como conheceu a entidade de mulheres negras Criola, que a estimulou a acompanhar ainda mais movimentações sociais e pensar o que é entrar para a universidade em meio a esse embate, o que a levou a fazer parte de coletivo universitário durante a graduação.

 

As dificuldades em ter acesso a uma educação pública de qualidade começaram justamente em uma instituição que se orgulha pela diversidade de seus alunos. A história de como ela conseguiu ingressar no vestibular na UERJ é digna das mais fantásticas narrativas ficcionais. Em 2004, por falhas de informação no texto do edital de seleção, acabou sendo impedida de ingressar na universidade. O mais impressionante é que, segundo determinava o documento, não havia autorização para entrar com qualquer tipo de recurso. Cerca de 100 cotistas, incluindo a própria escritora, ficaram do lado de fora do campus. “A ALERJ e o Ministério Público do Estado do Rio foram acionados, mas nada se resolveu, nós não podíamos contestar a regra, mas também não sabíamos qual era a regra”, diz Lu. Vários processos se amontoaram na Defensoria Pública, sem andamento e o tempo fez o resto. De desistência em desistência, longos meses se passaram e sobraram na fila apenas 3 pessoas: Lu, André, um cadeirante e Luciana, egressa de uma escola pública. Somente com um Termo de Ajustamento de Conduta do Ministério Público, fruto de uma insistência dos três, uma audiência pública com a Com. de Direitos Humanos da Alerj e participação de outras instituições negras é que a universidade de ensino se ajustou.

 

Mas os anos de Pedagogia não foram fáceis. Qualquer tema virava um embate, alguns professores eram contra o sistema de cotas, pois trazia um público diferente, negros e pobres contestando parte do que era ensinado dentro daquelas paredes. Os “objetificados” agora estavam ali falando e produzindo conhecimento. E para fortalecer ainda mais seu destino como escritora ainda não trilhado, acabou como bolsista do PROAFRO (Programa de Estudos e Debates dos Povos Africanos e Afro-americanos) da UERJ. Lá teve acesso a muitos mais, todos os dias: pensadores negros atuantes, obras de Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Abdias Nascimento, Milton Santos, Alberto Guerreiro Ramos, Lélia Gonzalez e outros, outras. Sem esquecer o COPENE – Congresso de Pesquisadores Negros. “Nós da Baixada precisamos naturalizar a presença dessas pessoas no ensino, fazem parte da História do Brasil e não apenas do 20 de novembro. Luis Gama foi um abolicionista negro ímpar e onde está na aula de História? Literatura? Mudança implica em informação, leitura, educação que não feche olhos e ouvidos, cale alunos. Isso é inadmissível”.

 

Entrevista a Fabio Leon

 

Como a literatura entra na sua vida?

Tarde, não existe uma linha temporal. Em 2007 eu escrevi um conto para a revista Eparrei, da Casa de Cultura da Mulher Negra de Santos/SP, “O caminho de Nande”, sobre uma mãe e sua filha que visitam a avó numa área que tinha sido de quilombo e a mesma conta a história desse lugar. Fui selecionada e o conto foi publicado, mas não levei essa aventura adiante. Entre 2011 e 2014 eu escrevia essencialmente poesia. Continuei militando, fiz parte (bem pequenininha, entre risos...) do movimento hip-hop da baixada, mas escrevendo, óbvio, sobre consciência. Já sobre ficção tinha pouco acesso e esse vinha mais da televisão, fui geração “Arquivo X” e os livros mais acessíveis eram “1984”, do George Orwell, e o “Fahrenheit 451”, do Ray Bradbury, ficções com forte conotação política. O segundo me chama muito a atenção, pois é aquela situação da TV substituir quase todas as fontes de informação, numa sociedade narcotizada e sem livros. Nessa época ainda não existia movimentos de literaturas independentes com espaço na baixada, a internet ainda não era um espaço complicado de acessar.  E dando um salto, vamos até 2015 na Bienal do Livro/RJ. Rodei o dia inteiro naqueles pavilhões e não achei protagonistas negros, foi frustrante. Não sei porque, mas resolvi que ia escrever. Naquele ano eu passei a escrever todo dia de madrugada e assim a Duologia Brasil 2408 “(In)Verdades” e “(R)Evolução”, nasceu e retornei à Bienal seguinte como autora. Em 2017, que surpresa, havia mais autores da Baixada com o mesmo ímpeto, mostrar a nossa escrita. E foi um momento em que muita gente se perguntou: que literatura era aquela que vinda daquele lugar?

 

Em praticamente todas as obras de ficção científica há diversos componentes dramáticos e éticos em que a tecnologia é o pano de fundo e aponta diversos direcionamentos. Como a temática antirracista encontra o seu espaço nesse tipo de narrativa?

Falando de afrofuturismo, lidamos com a ficção especulativa que é uma dimensão sem linhas entre a ficção científica, fantasia, mistério, distopia, cyberfunk e outros formatos. E raça é a tecnologia, pensando num sentido mais amplo, social: rever os lugares, os discursos, não apenas sob pessoas negras, mas todos e da nossa perspectiva, negra. Isso está presente em todos os meus escritos, livros e conteúdo gratuito. E claro, gênero e várias outras “partes” de quem somos vão estar presentes na minha escrita. Para dar uma ideia ampla, tenho um conto que mescla ficção científica e a realidade das empregadas domésticas, o nome é “Ode à Laudelina” (fundadora do primeiro sindicato de empregadas domésticas). A Ena da Duologia é uma voz negra que causa a revolução de um país e enxerga a corrupção que afeta os “fora do sistema” da modernidade. Em Ìségún falo de racismo ambiental e zonas de sacrifício, das empresas poluidoras, extrativismo urbano, humano, das divisórias entre espaço periférico e urbano, e ainda, de como a mitologia africana parece ser a “modernidade” negra que se vive na obra. Já “Conexão” fala da “humanidade negra” e alia isso com um enredo de contato extraterrestre e para quem não entendeu, lembre Elza Soares e a carne mais barata. Da minha escrita, tenho um micro conto sobre colonização, situação quilombola e a terra onde vivem, seu lar coletivo. Fiz um conto sobre os primórdios da Astronomia nos países africanos, calendários em forma de círculo de pedra marcando um ano de 354 dias guiado por constelações e a lua sete mil anos atrás, relógios solares de 3 mil anos. É isso! Mostro que podemos contar histórias com as vozes e lugares que nos cercam. Um bom exemplo é Octavia Butler com a série Xenogêneses e o aclamado Kindred, que chega ao Brasil em 2017. Imagine o impacto da mistura de viagem no tempo com o debate da escravidão e suas dores na década de 1970 nos EUA quando foi lançado? Os povos negros desde a Antiguidade têm uma história de vida e tecnologias, vários campos que foram apagados ou reutilizados. Por exemplo, a penicilina, pensam em Alexander Fleming, mas pinturas antigas no Egito mostram o seu uso inicial. As universidades de Timbuktu no Mali são do século XI, mal conhecemos, mas o mundo conhece e é patrimônio da UNESCO faz mais de uma década com revelações extraordinárias sobre astronomia, filosofia, etc.  O papiro matemático de Ahmes é outro exemplo, mas melhor que citar é ler. Escrevi um conto chamado “A Era Afrofuturista”. É a história de um menino visitando o Museu do Afrofuturismo e nele vou explicando a ideia do movimento que é apresentar a voz e a história negra de um modo interessante e que acolhe, faz pensar. Nele abordo as ideias de abduzido, telepata, atravesso anos de história negra, personalidades, heróis e heroínas reais e construo pontes para o futuro via passado e presente. Está disponível online, abrange todas as disciplinas, até química. É assim que produzo literatura antirracista, uma mistura de consciência, contestação, esperança e também bem-humorada.

 

 

Pode e deve. Estamos numa imensa metáfora sobre como olhar os acontecimentos

 e como cada um nos toca e agora... você pode tocar eles de volta – meu pai

riu e tirou uma das imagens da parede e lá estava a mágica. A imagem

mosaica descia, deixando um espaço vazio, depois ele reencaixou a

peça retirada”. – trecho de “A Era Afrofuturista”

 

 

E como a temática de raça nesse campo da literatura tem sido percebida pelo público?

Sempre existiu resistência, mas foco nas vozes que se veem finalmente protagonistas. Quando eu comecei em 2015, estava desenvolvendo uma literatura periférica que queria ler, me ver representada também. Já no exterior é diferente, se criaram os mercados, mas aqui o mito da democracia racial e o recorte econômico vão atrasar e muito nosso olhar sobre isso. Porém não nos enganemos, o embate lá é real, um exemplo mais recente é quando as palavras das mulheres negras Nnedi Okorafor e N. K. Jemisin se destacam no Hugo Awards, a mais importante premiação de literatura fantástica nos EUA, no mundo. Nesse momento o racismo surge forte, tenta comprar categorias, um escândalo e então me lembro do escrito de Samuel Delany, sou fã, traduzi “Racismo e Ficção Científica” (1988) onde o autor negro fala disso, da ocupação dos espaços e do confronto por poder na literatura, isso é representatividade e visibilidade. Já na minha escrita, sempre busco não só escrever, mas falar sobre ela, pensar sobre ela, conceituar: sou escritora, pedagoga e uma intelectual negra. São espaços de poder que devemos ocupar ou criar para enfim promover mudanças de fato.

 

Como você analisa a atual leva de autores negras e negros na literatura brasileira?

É um momento bom e o é porque trabalhamos com afinco para isso, para conseguir mostrar o que fazemos, embora ainda haja muitos desafios. O Sankofia eu fiz através de financiamento coletivo e saber que tem público, mudança social é relevante, receber retorno de atividades feitas em aula, da escola ao espaço acadêmico é tudo o que essa literatura afrofuturista almeja, mudar as consciências. E é importante demais citar o movimento de literatura que vem ocorrendo nas periferias de um lado ao outro do estado com suas bibliotecas e encontros literários, o LiteraCaxias é um exemplo cravado no centro de Duque de Caxias, na biblioteca municipal Leonel Brizola, tem página/grupo no facebook, recomendo. A periferia está aos poucos consumindo mais literatura feita pelos seus e isso é ótimo.

 

Na mídia jornalística, na propaganda e em algumas produções audiovisuais em canais de streaming há, ainda que de forma tímida, a presença de representações sobre as questões raciais, quer seja pela presença de mais atores e atrizes negras e negros nesses espaços ou pelos conteúdos específicos nessas plataformas. O que você acha dessa representatividade e como ela se manifesta nesses conteúdos?

Tenho percebido algumas mudanças nesse sentido, sim. Tem uma série num desses canais de streaming que a protagonista é uma advogada negra. Ela é refugiada de um país da África por causa de uma guerra civil, mas ela é obrigada a trabalhar de novo essa questão como profissional do Direito e então... Também há uma série de terror, super-heróis. Tudo isso é muito importante, mas ter algumas das rédeas da mesa de quem decide a programação, o investimento também, para assim mais temas surgirem e termos espaço para serem exigidos também, consumo é uma forma de poder. Quando você vê o cineasta Jordan Peele produzindo e lançando “Corra!”, por exemplo, você diz, “É isso, eu quero ver mais!”. Mais histórias como essas, mais atores e produtores negros precisam atuar, ter narrativas de qualidade disponíveis para trabalhar.  Uma série de questões que estavam mais restritas aos movimentos negros, de uns tempos pra cá são debates que vem fazendo parte das pautas públicas, já estava na hora numa sociedade com tanto racismo direto e indireto como a nossa.

 

O que acha dos debates sobre palmitagem e colorismo?

Particularmente, eu detesto esse termo (palmitagem). Eu não reconheço esse termo, agressivo em relação a pessoas negras. Eu vejo como complicado simplesmente julgar, isso mostra falta de respeito e empatia. Ninguém nasce pronto e não é uma questão simples. Fica nítido nessas “polêmicas” um buraco no debate sobre esse assunto, especialmente quando ganha as redes em formato de senso comum. Sinceramente, deveriam estudar a construção da identidade negra e começar por debater a sua antes de julgar alguém, nossos pensadores e pensadoras estão aí, escritos, esperando que os leiam e não seja um instrumento de segregação entre os nossos. Esse deveria ser o foco. Devemos estar atentos a como nos vemos, como somos vistos, o que o racismo faz com a nossa presença, como a afetividade é impactada e então cada um se resolve, pois nada nesse enorme assunto vai se resolver amanhã. Apontar o dedo é ridículo, ninguém tem esse direito, a não ser que esteja numa existência de “comercial de margarina”, mas cá estamos nós falando de racismo novamente, a pessoa não percebe que está servindo de algoz contra outra pessoa negra, fazendo o “serviço sujo”. Sobre o colorismo, o debate é como a gradação da cor é abraçada pelo racismo, se cria uma ideia de mestiçagem, de fenótipo que vai criar um ranking de traços que devem almejar: cor de pele, cabelo, nariz e isso cria um degrau de “valor humano”. Mas que não é real, serve para nos dividir, fechar os olhos e silenciar negros e negras “aceitos”, mas que são feridos também, assim como os não aceitos, temos que refletir e estudar sobre como isso se manifesta desde a escolinha, parar de chamar racismo de bullying, escravizados de escravos. Isso é nefasto, mas é o sucesso do projeto mito da democracia racial, do racismo causando nosso sofrimento, depressão, suicídio e tantos outros males naqueles que seguem vivos e se mutilando socialmente. Essas questões são pontos, também, no debate da saúde da população negra e mais uma vez peço leitura, brancos, negros, todos, se auto avaliar, ser antirracista é fundamental.

 

 

Blog da Escritora 

 

Página da Editora Monomito, que publicou o romance Inségún