SILVIA 2.jpg

08 de novembro

Entrevista do mês: Silvia Ramos 

Trinta anos de uma história arcaica

Em entrevista ao site do FGB, a cientista social Silvia Ramos aponta erros e acertos da segurança pública do Estado e, contestando pesquisas e estudiosos do tema, afirma que a violência na Baixada não aumentou com a chegada das Unidades de Polícia Pacificadora.

 

Entrevista a Fabio Leon 

 

Essa contagem dos policiais militares mortos pela mídia contribui para o discurso de que estamos  em guerra?

 Eu acho que contar (os mortos) é muito importante. Em anos anteriores, nós tivemos uma média de 140, 150 policiais mortos. Esse ano não vai fechar uma série histórica se comparada a outros. Porém, sempre que uma sociedade, na minha opinião, tem esse gesto de contar os seus mortos, é uma forma de desnaturalizar essa situação. Se chocar com esses números é necessário. Mas é importante saber, também, o que está por trás da mortes desses policiais.  De minha parte acho positiva essa contagem. Devemos fazer a mesma coisa com os jovens negros da Baixada também. Quantos homicídios teremos em Nova Iguaçu? Em Caxias? Eu estava entrevistando o (apresentador) William Bonner para um livro sobre mídia e violência que editamos aqui no Cesec há 10 anos e perguntei pra ele se em vez de publicar os índices da Bovespa (Bolsa de Valores de São Paulo), que ninguém vai prestar atenção, se o Jornal Nacional não poderia divulgar números sobre letalidades violentas. Eu gostaria que esses números fossem divulgados todos os dias.

 

Mas não há uma espetacularização dessa contagem em contraposição ao número de chacinas que acontecem na Baixada e que quase não são noticiados na mídia?

 

Cabe a nós questionar isso. Há uma agenda na sociedade que se preocupa quando policiais morrem. Mas também temos uma agenda sobre quantos policias matam. Há grupos que estão tomando conta dessas agendas, como a Anistia (Internacional Brasil) e tantos outros que estão fazendo essa contabilidade. Essa ideia do body counter (contagem de corpos, em inglês) surgiu na mídia norte-americana em função da guerra do Iraque. Foi um soldado que virou repórter e após assistir a tantas mortes, criou essa contagem, que era avassaladora, para que elas não perdessem o seu valor de noticiabilidade. E esse contador de corpos ficou exposto em alguns lugares. Em Pernambuco, nos anos 2000, uma ONG chamada PE Body Count fez a mesma coisa e colocou um contador, com números atualizados diariamente, em lugares de destaque para chamar a atenção da população. Essa iniciativa acabou gerando o Pacto Pela Vida um projeto de segurança pública com a preocupação em se reduzir os homicídios no Estado. Existe um discurso por trás da morte de policiais de que eles são apenas vítimas de assassinos cruéis. Quando sabemos que essas dinâmicas são muito mais complexas. São policiais que matam policiais através de grupos de extermínio, acertos de contas, são assaltados e muitos reagem sozinhos para matar o assaltante que está acompanhado de comparsas. Mas o que considero grave além da comoção gerada pelas imagens dos enterros desses PM´s é a ideia vinda da secretaria de segurança ou do comando dos batalhões de que os soldados devem reagir, o que acaba provocando mais mortes. Tem havido uma omissão covarde por parte da corporação e, pra piorar, temos um comando que faz o discurso de que estamos em guerra, de que os policiais são guerreiros e que todo o resto são apenas danos colaterais.

 

Na sua opinião, projetos de segurança pública, como esse desenhado às pressas pelo governo federal, foi um apelo da população que se sentia desprotegida ou foi uma encomenda dos setores empresariais que se viam prejudicados com o aumento do número de roubos de caminhões de carga, por exemplo?

 

Esse modelo não foi inventado agora, embora haja muita improvisação, e traz um dispositivo presente na Constituição chamado de GLO (Garantia de Lei e Ordem). Ele é empregado quando há uma grande ameaça a ordem estabelecida e as forças armadas são chamadas, tendo sido acionado 5 vezes só esse ano. Esse dispositivo foi acionado por critérios mais políticos do que técnicos. Entretanto, percebe-se que, de fato, as maiores vítimas de roubos a patrimônio ou de veículos, se dão na Baixada Fluminense e São Gonçalo. Se você olhar os números de janeiro a julho de 2017, vai encontrar o seguinte: enquanto houve 9 mortes em Copacabana, aconteceram 342 assassinatos em Nova Iguaçu e nas outras AISP´s (Áreas Integradas de Segurança Pública) . No Leblon foram 8 e em Caxias, foram 250 mortes. Só roubo de veículo foram 200 em lugares como Leblon e Copacabana e mais de 3 mil em Nova Iguaçu. Nós especialistas em segurança pública tivemos uma tradição de dar muita importância aos crimes contra a vida e aos autos de resistência. Embora saibamos que a polícia do Rio de Janeiro é a que mais mata, mas também é que mais morre no mundo, deixamos um pouco de lado os crimes contra o patrimônio que é o que realmente produz medo na população. Eu discordo da ideia de que o governo chama as forças armadas apenas para atender aos interesses dos poderosos. O governo as chama no momento em que está perdido. Os ministérios da Justiça e da Defesa estão mais perdidos ainda. Há um momento de tensão generalizada por todos, um anseio da população. Se você pegar o número de assaltos a transeuntes na Baixada e em São Gonçalo verá que houve uma explosão inédita em 2017 se comparado aos anos anteriores. Os índices de roubos na Zona Sul do Rio são índices europeus. Isso gera na população mais pobre uma percepção de descontrole e abre um atalho muito propenso de adesão a propostas fascistas, ilegais e incivilizadas pra resolver o problema da criminalidade. Temos de rever essa leitura de que só aos poderosos interessa o resgate desse controle.    

 

Em uma entrevista sua de 2007, você disse que havia pouca participação da sociedade civil (movimento negro, de mulheres e de outras minorias) nas discussões sobre Segurança Pública. Havia uma espécie de protocolo de segurança em “não se meter nesses assuntos”, mesmo com o aumento de estatísticas englobando violência policial e a discussão entre essas esferas ser mais do que necessária. Passados 10 anos dessa declaração, e considerando a perspectiva de uma democracia em crise nos dias atuais, qual a análise que a senhora faz desse cenário? A sociedade civil tem medo de dialogar com as autoridades policiais?

 

Muito boa a pergunta. Há 10 anos o tema segurança pública, ou se falar de polícia, não era considerado um tema nobre, digamos assim, entre os progressistas e outros setores da esquerda. Falava-se muito de saúde, educação, pobreza, assistência social, miséria. Mas em certos assuntos não deveríamos nos meter. Mas de lá pra cá houve uma percepção de que esse tema era importante de ser discutido. Foram criados o Fórum Nacional de Segurança Pública, o Instituto Sou da Paz, o Viva Rio, e muitas outras entidades e instituições que se fortaleceram. Surgiram os grupos de jovens de favela, o Afroreggae, o Nós do Morro, duas outras gerações de militantes que também vieram, como o coletivo Papo Reto, o Voz da Comunidade. Em todos esses grupos o tema violência está sempre presente em suas agendas. Houve um processo de apropriação. Hoje muito mais gente discute segurança e políticas de segurança, a ponto de chegar a escutar de muitos policiais: “quem eles acham que são pra discutir segurança?” “Eles já sentaram em uma viatura, já mataram quantos vagabundos?” Eu vejo isso de forma positiva. Que policiais estejam percebendo que outras pessoas que não agentes do Estado queiram dar palpites, discutir segurança. 

 

Mas a impressão que se tem é que, embora os grupos tenham se capilarizado, não há um consenso sobre que tipo de aproximação possa existir, até mesmo em espaços públicos, entre policiais e membros de todos esses coletivos que a senhora cita, principalmente os de favelas, sem que haja algum elemento de tensão nos debates.

 

Exatamente. Há uma tensão enorme entre policiais e não policiais. Mesmo entre grupos que querem defender o profissional de segurança pública de orientações que acabam sendo contra a categoria. Percebe-se que muitos policiais sérios e do bem ficam extremamente ofendidos com críticas que organizações e especialistas fazem a eles. Eles pensam: “se estão criticando a polícia, estão do lado do bandido”. Eles possuem extrema dificuldade em perceber que outras pessoas podem criticar a categoria e estar do lado da polícia. Mas queremos que a polícia mude. As polícias fluminenses têm uma marca corporativa muito forte e possuem muita dificuldade de diálogo com setores, organizações que não sejam policiais.

 

O projeto das UPP´s acabou ou está apenas em crise, com possibilidades de retornar ao que era?

Ele está em estado terminal. Na UTI. Mas não houve um enterro. Eu particularmente acho que deveríamos apostar em programas que contemplem a Polícia de Proximidade. Nós deveríamos nos concentrar onde as UPP´s deram certo. Reproduzir o que funcionou e afastar o que deu errado. Temos essa análise, é possível de ser feito e os policiais estão lá. São 9 mil e poucos policiais. Apesar de terem sido retirados por volta de 3 mil, ainda é um contingente muito grande. Tem muita coisa a ser feita do que apenas abandoná-los ali. Eles vivem à mercê de tiroteios e das ameaças que vem de toda a parte. Nós voltamos ao que o Rio era há vinte anos...

 

Acabou o triunfalismo...

 

...Quando você está patrulhado uma área com um fuzil e se defronta com um criminoso portando um outro fuzil, você precisa tomar uma decisão. E qualquer uma delas pode ser ruim. Você vai atirar ou não? Se você não combater, você se desmoraliza e acaba cedendo esses territórios a esses bandos armados. Se você os enfrenta, existe a possibilidade altíssima de se matar moradores e os próprios policiais. Os bandidos voltaram porque não houve um trabalho de inteligência e de investigação e as quadrilhas utilizavam as mesmas estratégias de antes. O problema da falência das UPP´s é da polícia. Os criminosos apresentam um repertório sem nenhuma novidade. As armas são as mesmas, os esquemas de entrada delas nas comunidades são os mesmos. Ninguém descobre quem são os grandes mercadores de armas, mas todos sabem que elas entram pela Baía de Guanabara, pela Avenida Brasil, pelo Galeão. Os criminosos que saíram das UPP`s foram pra onde? Não houve um trabalho de monitoramento ou de acompanhamento das quadrilhas, do fortalecimento das facções. A secretaria de segurança não fez uma mudança estrutural quando as UPP´s estavam dando certo. A polícia velha, arcaica, aquela dos arranjos, da corrupção, ganhou da polícia da UPP. O projeto da UPP poderia ter tido sustentabilidade se bem avaliado. Ele se perdeu por si mesmo.

 

A senhora foi uma das criadoras do projeto UPP Social, que veio a ser implantado nas favelas cariocas quando as Unidades de Polícia Pacificadora inauguraram a política de governo do então governador Sérgio Cabral. A senhora defende muito o discurso da redução de homicídios como um dos resultados positivos obtidos por essa política pública. Mas tanto movimentos sociais quanto moradores dessas comunidades, com o passar do tempo, reclamaram de processos arbitrários como violações, abusos de autoridade. Popularizou-se a expressão militarização da vida, em que os PM`s se comportavam como síndicos em um condomínio, interferindo diretamente, e as vezes de forma violenta, no cotidiano dessas pessoas.  Você suspeitava que isso fosse acontecer?

 

(pensativa) ...Eu...imaginava que com a visibilidade do programa das UPP´s, a grande maioria dos praças (soldados) vindos de cidades que não tinham experiências negativas em favelas, e com a presença de jovens capitães no comando, e estamos falando de oficiais com 20 e poucos anos, que poderiam se entusiasmar com um projeto novo, a militarização poderia ter um efeito mais controlado. Eu imaginava também que os fóruns comunitários iam dar conta, como foi feito no Chapéu Mangueira, no Boréu, na Providência e em tantos lugares onde freqüentei, onde líderes comunitários se sentavam na frente de um grupo de policiais e falavam “isso está errado!”. Eu achava que esse modelo era suficiente pra contrabalancear uma tendência à militarização da vida cotidiana trazida pela polícia. Mas eu acho que estava enganada. A militarização se impôs. As instâncias que poderiam fazer com que moradores de favelas controlassem as ações dos policiais foram se fragilizando numa velocidade impressionante. Mesmo onde as UPP´s tinham sido bem sucedidas.   

      

A senhora chegou a visitar as comunidades em que a UPP Social foi implantada? Que impressões teve?

 

Eu estive pessoalmente nas 10 primeiras UPP´s. Ia diariamente às favelas em 2010. Eu vi coisas que já não estavam funcionando. Mas também vi momentos de muita capacidade de autoridade de moradores e líderes comunitários sobre os policiais. De ajustes. Havia diálogo. Nós nos reunimos com o governador e o prefeito na época e eles disseram: “vai haver um choque de projetos sociais e serviços urbanos nas favelas”.  E isso, de fato, aconteceu nos primeiros meses. Foi dessa forma que se mudou a segurança em Nova Iorque. Foi assim que se fez no Projeto Fica Vivo, em Minas Gerais, e o (já citado) Pacto Pela Vida, em Pernambuco. A prioridade nesses territórios foi uma ação integrada. Juntar todos os secretários nas reuniões uma vez por mês e discutir o que está acontecendo em tal lugar. Esse tipo de coordenação não poderia ser afrouxada. De 2010 a 2012 não houve um só tiro dado em policiais nas UPP´s. Pelo menos, esses acontecimentos não tinham ligação direta com o tráfico varejista local. Talvez, no máximo, um ou dois incidentes envolvendo algum maluco que, retornando da prisão, não sabia que as coisas haviam mudado. Esse programa chegou a ter tanta legitimidadade que até o tráfico estava funcionando de uma maneira diferente. Por que isso não foi mantido? Por falta de interesse da prefeitura e do governo do Estado para que as favelas mudassem no Rio de Janeiro.

 

Uma das consequências da instalação das UPP´s, segundo alguns especialistas, foi o crescente fluxo migratório da criminalidade para a Baixada Fluminense. Foi uma consequência natural do processo?

 

Acho que sim. Houve, principalmente, a transferência de uma modalidade do tráfico carioca, de uma maneira de agir e de ser desse tipo específico de tráfico, que possui características quase que exclusivas de funcionamento, de venda de drogas, de controle de território, que tinham se desenvolvido nas favelas cariocas. Esse tipo de modalidade criminal não é frequente em outras cidades do Brasil e do mundo. Esse contexto de grupos armados controlarem uma fatia de um território, de serem administrados por traficantes varejistas, que passam a se utilizar de outras modalidades criminais que vão desde roubo de celulares até a receptação de carros roubados, passando pela interferência na venda de botijões de gás e nos transportes locais, por exemplo, não existia com essa ostensividade nas ruas da Baixada nem de São Gonçalo. Houve um estímulo nesse sentido, mas não nos níveis que temos hoje. A taxa de homicídios da Baixada sempre foi mais alta do que a capital. A partir da implantação das UPP´s em 2010, os homicídios são reduzidos em todo o Estado e apresentamos, inclusive para o Fórum Grita Baixada, os resultados de uma pesquisa, demonstrando tais quedas dentro de uma série histórica. Eu tenho muita preocupação com essa teoria de que “estava tudo bem na Baixada e as UPP´s provocaram uma explosão da criminalidade”. Isso não é verdade. Infelizmente, a Baixada nunca deixou de ser violenta. Outra característica interessante é que Nova Iguaçu sempre teve muito mais homicídios do que o Rio, mas as mortes produzidas pela polícia, através dos autos de resistência, sempre foram proporcionalmente baixas. Nunca houve essa prática de se matar em conflitos como acontecem nas favelas cariocas. Embora, na Baixada, exista o acerto de contas de grupos de extermínio com a criminalidade. Mas numericamente não há uma explosão.

 

O modelo de UPP poderia dar certo na Baixada?

 

O modelo deu certo em pequenas favelas, com perímetros menores. Hoje é difícil avaliar o que teria de ser feito. Não gostaria de elaborar nenhuma tese nesse sentido. É preciso, como disse, rever o que aconteceu, principalmente nas favelas grandes. O que fica dessa história é que a polícia militar do Rio de Janeiro se mantém a mesma há 30 anos, funcionando dentro dos esquemas mais arcaicos do mundo, dentro de quartéis! Se você entrar em um batalhão, vai encontrar um policial que vai anotar a placa do seu carro em um papel anexado a uma prancheta velha de madeira e três dias depois aquela informação contida naquele papel vai desaparecer. As salas onde ficam depositadas as armas e as munições não têm câmera de vídeo. Há uma completa ausência de sistemas de controle, de eficiência, de regulação do tempo e tudo o mais. Isso tudo favorece não apenas a improvisação e o amadorismo, mas a corrupção. Temos na polícia do Rio uma cultura da ausência de controle. Temos um obstáculo na segurança pública do Estado do Rio e esse obstáculo é a própria polícia militar.