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10 de maio de 2021 

Desaparecimentos em dados

Belford Roxo, uma triste recordista*

Município onde desapareceram os meninos Lucas Matheus, Alexandre e Fernando Henrique há quase 5 meses, está entre as 6 cidades da Baixada Fluminense que apresentaram aumento no número de casos de desaparecimentos de jovens entre 0 e 17 anos. 

 

*Essa reportagem é resultado de uma parceria entre o Fórum Grita Baixada e o Programa de Jornalismo de Dados de Segurança Pública e Direitos Humanos do Instituto Sou da Paz

 

Texto: Fabio Leon  

 

Atualizado em 11 de maio de 2021, às 13h 

 

Há mais de 4 meses, as famílias de 3 meninos da comunidade Castelar em Belford Roxo, Baixada Fluminense, estão sendo torturadas sistematicamente. A saúde mental dessas pessoas convive permanentemente com a saudade e a dor, ambas costuradas em seus corpos por uma gigantesca pergunta sem fim: onde eles estão? Os primos Lucas Matheus da Silva, 8 anos de idade e Alexandre da Silva, de 10, passaram na casa do amigo Fernando Henrique Soares, de 11, para jogarem bola em um campo de futebol ali nas proximidades de suas residências, enquanto o almoço ainda não estava pronto. Era 27 de dezembro de 2020 e, desde então, nunca mais foram vistos. Passaram a se tornar uma fria estatística que engorda um dos mais perversos problemas sociais da região. A Baixada Fluminense é um conjunto de territórios onde seres humanos somem em quantidade alarmante.  

 

Fórum Grita Baixada resolveu fazer uma investigação sobre os dados de pessoas desaparecidas, através de levantamentos sistematizados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro. A pesquisa se dividiu em duas partes. Uma delas é uma varredura mais geral, para se contabilizar os desaparecidos no Estado do Rio de Janeiro e nas cidades que compõem a Baixada Fluminense. A outra envolve especificamente uma das categorizações de faixa etária, de grupos vulneráveis entre 0 a 17 anos. Existe uma primeira, de 0 a 11 anos, mas preferimos nos debruçar na segunda opção de forma a ter conhecimento sobre os números que envolvem desaparecimentos entre a população jovem e não apenas a infanto-juvenil.  

 

Alguns esclarecimentos antes de prosseguirmos. A interpretação dos dados gerais sobre desaparecidos é baseada na série histórica disponibilizada e atualizada até o presente momento pelo Instituto de Segurança Pública. Portanto, há especial interesse entre março de 2020 e março de 2021, época do início e auge da pandemia do novo coronavírus, respectivamente, considerando as medidas de quarentena e isolamento social, embora esses tópicos não sejam indicadores na sistematização apresentada pelo ISP. Os dados referentes a grupos vulneráveis com faixa etária de 0 a 17 anos estão estacionados em 2020, pois, segundo informações do próprio ISP, apuradas pelo FGB, a atualização é feita anualmente. Dessa forma, está prevista para fins de maio a atualização dos dados referente ao ano passado. Assim como os dados gerais sobre desaparecidos estão congelados até o primeiro trimestre de 2021 em função do mesmo procedimento cronológico e considerado a data de fechamento dessa edição.  

 

Desaparecidos: um problema teórico-metodológico e de investigação por parte das autoridades       

 

Localizar o paradeiro de Lucas Matheus, Alexandre e Fernando Henrique é um desafio injusto, independente das falhas, da morosidade e até mesmo do racismo que possam surgir como justificativas das autoridades policiais em não se esmerar com mais afinco, objetivando elucidar uma investigação de desaparecimento de três crianças pobres, negras e periféricas. Uma das hipóteses, ainda sem muita sustentabilidade de defesa, é que o tráfico local poderia ter sido responsável pelos sumiços. Trabalhar nesses casos envolve uma grande complexidade. São corpos que simplesmente “somem” sem deixar vestígios ou testemunhas.

 

Quando elas, as testemunhas, se dispõem a colaborar com algum tipo de informação dessa natureza, muitas vezes essa iniciativa representa um risco, pois as circunstâncias dos desaparecimentos podem ser resultantes, dentre tantas variáveis, de uma ação das milícias. Oficializar a denúncia é adentrar, por exemplo, delegacias que funcionam em territórios dominados por milicianos, como bem explicou o sociólogo José Claudio Souza Alves, um estudioso dessa modalidade de poder paralelo há mais de 26 anos, nessa matéria onde, inclusive, questiona a veracidade dos dados coletados pelo Instituto de Segurança Pública 

 

A própria definição de desaparecidos, para alguns especialistas, carece de um aprofundamento semântico, pois a terminologia é considerada vaga e não contempla sua derivação mais complexa, os desaparecimentos forçados. É uma “disputa” teórico-metodológica e de categorização, como explica o também sociólogo Fabio Araujo, renomado pesquisador nesse campo, em entrevista para o site do Fórum Grita Baixada, em setembro de 2019 Para ele, a palavra desaparecidos, assim categorizada pelo ISP, é uma nomenclatura meramente administrativa para nomear uma situação.

 

“Ela engloba várias situações, na verdade. Desde um desaparecido que sumiu de forma voluntária, que se perdeu, saiu de casa, etc. Hoje há um grande debate sobre isso. Existe uma linha de pesquisadores que propõe uma categorização que seria a de desaparecidos civis, cuja aparição se deu em um período pós ditadura civil militar, como uma forma de se diferenciar dos desaparecimentos políticos. Mas os desaparecimentos forçados são uma categoria que serviu para nomear, também, um tipo de violência ainda não completamente entendida que era o desaparecer com os corpos. Não que ainda fosse especificamente um homicídio, pois não havia a presença de um corpo e, portanto, não haveria a materialidade de um crime. Foi uma forma que se construiu na ditadura, e entre os movimentos contra a ditadura, para se poder falar sobre essa realidade”, diz Araujo na entrevista.

 

O que dizem os dados

 

Começaremos a análise com os números do Estado do Rio de Janeiro. Em março de 2019 foram registrados 407 casos de desaparecidos (ou desaparecimentos), uma projeção de 5% a menos em relação ao mesmo período do ano anterior (2018). Em março de 2020, no início da pandemia, portanto, foram registrados 272 casos, uma queda considerável de 33% ou 135 casos a menos em relação a março de 2019. Entretanto, em março desse ano, os números deram um salto de 21% chegando a 328 casos em relação ao mesmo período do ano anterior ou 56 casos a mais em comparação com março de 2020. No somatório geral, o Estado do Rio registrou 4.780 casos de desaparecimentos em 2018, seguido por 4.768, em 2019 e de 3.350 desaparecidos em 2020.

 

Desaparecimentos nas AISP`s da Baixada: Belford Roxo tem 57% de aumento nos casos em março de 2021.

 

Para auxiliar o planejamento e a coordenação operacional das organizações policiais, foi criado um modelo de integração geográfica de competências entre as polícias Civil e Militar, chamada AISP (Área Integrada de Segurança Pública). Dessa maneira, o contorno geográfico de uma AISP foi estabelecido a partir da área de atuação de um batalhão de Polícia Militar e das delegacias de polícia Civil.

 

Sobre os desaparecimentos registrados nas seis Áreas Integradas de Segurança Pública (AISP´s) que compõem a Baixada Fluminense, (é bom lembrar que esses dados são mais generalistas e se concentram apenas no somatório geral de casos), cinco tiveram aumento no número de casos de desaparecidos em comparação a março de 2020, período em que a pandemia de covid19 oficialmente chegou ao país. Apenas a 34ª. AISP, que compreende os municípios de Magé e Guapimirim teve um recuo no número de desaparecidos. Embora tenha totalizado 70 casos no ano de 2020 e o primeiro trimestre desse ano já apresente 30 registros de desaparecidos, há uma queda de 9% em relação a março do ano passado. É a AISP na Baixada que também concentra o menor registro do total de desaparecimentos compreendidos no quadriênio 2018-2021, embora apresente 291casos somados até março desse ano.    

 

Já a campeã de registros de desaparecimentos na Baixada é a 20ª. AISP, que compreende os municípios de Nova Iguaçu, Mesquita e Nilópolis, totalizando 1073 casos no triênio 2018-2020. Em março desse ano, houve um aumento de 19% em comparação ao número de casos no mesmo período do ano passado (79), mesmo havendo uma queda de 126 casos em 2020 (274 no total) em comparação com 2019, que registrou exatos 400 desaparecimentos nessa Área Integrada de Segurança. Porém no primeiro trimestre de 2021, essas cidades concentravam 79 casos de desaparecidos, sendo que março desse ano registrou um aumento de 19% em relação a março de 2020.

 

Em segundo lugar ficou a 15ª. AISP que compreende o centro de Duque de Caxias e seus outros 3 distritos (Campos Elíseos, Xerém e Imbariê) com 699 casos de desaparecimentos. Assim como ocorreu com a 20ª. AISP, em março de 2020 houve uma queda expressiva no número de registros (total de 277 em 2019 e 151 em 2020). Porém, apenas no primeiro trimestre de 2021, Duque de Caxias já apresentava 65 registros de desaparecidos, o que resultou em um aumento de 17% em relação a março do ano passado. Em 2018, a região teve 271 casos. Em 2019, 277. No ano passado, o município teve um recuo de 126 casos (151 no total), embora o triênio 2018-2020 obtenha a preocupante marca de 699 desaparecidos. Somente nos três primeiros meses de 2021, Duque de Caxias já possui 65 desaparecimentos. Sendo em que comparação com março do ano passado, os sumiços em março de 2021 tiveram um acréscimo de 17%.

 

A 39ª. AISP, que concentra a cidade de Belford Roxo, apresenta dados alarmantes em relação ao período 2018-2021. Dessa forma, o município registrou um total de 39 desaparecidos em 2018, 32, em 2019, 21 em 2020, (incluindo os meninos Lucas Matheus, Alexandre e Fernando Henrique), considerando somente os meses de janeiro a março desses anos. O ano de 2019 é o recordista de casos de desaparecimentos na cidade. Entretanto, março de 2021 já se consagra com um preocupante segundo lugar. Um aumento de 57% de casos em relação ao mesmo período de 2020. Nos três primeiros meses de 2021, já desapareceram 31 pessoas na cidade.

 

 

Desaparecimentos (grupos vulneráveis na faixa etária de 0 a 17 anos)

 

Conforme mencionado anteriormente, o ISP ainda está concluindo a sistematização e eventual atualização dessa categoria de casos de desaparecimentos ocorridos em 2020. Assim sendo, optamos por fazer um comparativo com os dados disponíveis referentes aos anos de 2018 e 2019 nas 13 cidades da Baixada Fluminense. Dentre elas, seis apresentaram acréscimo de casos no biênio 2018-2019.  

 

Belford Roxo: 85

Nova Iguaçu: 183

Seropédica: 9

Nilópolis: 28

Guapimirim: 21

Queimados: 46

 

Em 5 cidades, o número de negros e negras ultrapassou o quantitativo de desaparecimentos quando comparado com a etnia branca. Os anos em algumas cidades foram omitidos em função do recorde de vítimas pertencer a outra etnia não pertencente a nossos objetivos de análise. Ex: pessoas pardas.

 

Belford Roxo:

2018: 38 casos

14 vítimas negros e negras ou 36,8%

6 vítimas da cor branca ou 15,8%

2019: 47 casos

17 vítimas negros ou negras ou 36,2%

6 vítimas da cor branca ou 12,8%

 

Nova Iguaçu

2018 88 casos

18 vítimas negras e negros ou 20,5%

17 vítimas da cor branca ou 19,3%

2019 95 casos

24 vítimas negras ou negros ou 25,3%

14 vítimas da cor branca ou 14,7%

 

São João de Meriti

2018 49 casos

10 vítimas negras e negros ou 20,4%

9 vítimas da cor branca ou 18,4%

 

Nilópolis

2018: 15 casos

5 vítimas negros ou negras ou 38,5%

3 vítimas da cor branca ou 23,1%

 

Magé

2018: 22 casos

8 vítimas negros ou negras ou 27,6%

2 vítimas da cor branca ou 6,9%

2019: 29 casos

6 vítimas negras ou negros ou 27,3%

1 vítima da cor branca ou 4,5%

 

Para além da crueldade desses dados, o que se observa é que há uma quase inexistência, nos poderes públicos constituídos na Baixada Fluminense, de políticas que abordem de forma mais robusta e holística o problema dos desaparecidos ou desaparecimentos forçados. O governo do Rio de Janeiro anunciou, em 2019, a criação da Coordenadoria de Desaparecidos, cuja direção fica a cargo de Jovita Belford, cuja filha está desaparecida há quase 20 anos. No bojo dessa iniciativa, está a criação, dentre outras possibilidades, de mecanismos eletrônicos (aplicativos) para facilitar a denúncia e localização de paradeiro de pessoas nessa condição.

 

Entretanto, há alguma luz incidindo por toda essa penumbra. Poucas cidades da Baixada, excetuando-se algumas como São João de Meriti e Queimados, possuem secretarias de Direitos Humanos, pastas que, historicamente, são responsáveis por essas demandas. Muitas preferem ter uma secretaria de Assistência Social na folha de pagamento para evitar “politizações com viés ideológico”, seja lá o que isso signifique. Recentemente, a prefeitura de Japeri inaugurou o seu Núcleo de Atendimento para Familiares de Desaparecidos e Documentação (NAFADD). Além de prestar assistência a famílias que buscam parentes desaparecidos, o espaço vai auxiliar pessoas que necessitam de documentações básicas, como certidão de nascimento, RG e carteira de trabalho.

 

A face mais cruel do desaparecimento é que ele é mutante em suas motivações. Pode ser uma violência cometida por agentes de segurança do Estado, atribuída a poderes paralelos/grupos armados (milícias ou tráfico) ou resultado de fatores pessoais e subjetivos. O que torna a tomada de decisões sobre que caminhos seguir ainda mais difícil.